Em defesa do Bolsa Preguiça

Preciso tanto de nada fazer que não me resta tempo para trabalhar.

Pierre Reverdy

Não, não estou aqui a escrever para defender o Bolsa Família. E muito menos para criticá-lo. Embora, em tempos de ajuste fiscal, este debate esteja até meio fora de moda, escrevo para chamar atenção à necessidade premente de avançarmos com nossas políticas assistencialistas na direção de um grupo discreto de cidadãos que ainda hoje, em pleno século XXI, segue injustiçado e vítima de preconceito no mercado de trabalho. Se os rentistas já contam com a taxa de juros mais elevada do mundo e um sistema tributário regressivo e extremamente generoso, e os pobres, com o imprescindível auxílio do Bolsa Família; se artistas e produtores culturais ainda são beneficiados por patrocínio de estatais e leis de incentivo à cultura, e professores universitários e pesquisadores, por bolsas de pesquisa dos mais diversos órgãos de fomento; enfim, se tantos grupos recebem a devida ajuda do Estado brasileiro (funcionários públicos, filhas de militares, sindicalistas, para citar mais alguns), um, ainda hoje, continua desassistido, completamente ignorado pelo poder público: o dos preguiçosos crônicos, esse verdadeiro patrimônio nacional. Este manifesto defende, assim, a criação imediata de uma lei que garanta, para todo pobre preguiçoso que vive neste imenso país tropical, uma renda mensal mínima para sua sobrevivência digna sem a necessidade de um emprego: o Bolsa Preguiça.

Antes que comecem os julgamentos, sim, confesso, sou um pecador e o meu maior pecado é a preguiça. Como é difícil para mim acordar cedo de segunda a sexta-feira, levantar da cama, encarar o trânsito, chegar ao trabalho e, ainda por cima, ter de trabalhar…. Entretanto, quem, senão um preguiçoso crônico, poderia defender a criação do Bolsa Preguiça? De minha parte, tendo a desconfiar profundamente dos defensores das causas alheias.  Para mim, sua atitude nada mais é do que fruto da mais pura vaidade (quando não do mais covarde oportunismo). E por que seria a vaidade (ou a inveja, ou a avareza) um pecado menor do que a preguiça? Mundo estranho este em que vivemos, onde os autores das mais terríveis atrocidades devem merecer o nosso perdão, enquanto o preguiçoso, esse sim um verdadeiro coitado, ainda é tratado como pária…

Opa, pera lá, já ouço gritar um economista de esquerda. Tudo bem criticar o rentismo, mas artistas criam bens culturais, enquanto pesquisadores produzem conhecimento, diz ele. Seriam não apenas justos, mas desejáveis, portanto, incentivos estatais a esses grupos. Pois bem. Pois bem. Malabarismos retóricos à parte, é fato que quase ninguém assistiu à maioria dos filmes feitos com dinheiro público, por exemplo, e o grosso das pesquisas realizadas nas universidades brasileiras não serve absolutamente para nada (a não ser ter garantido trabalho e renda aos respectivos pesquisadores). Além disso, eu também posso citar aqui uma série de benefícios sociais (ou externalidades positivas, para ser tecnicamente mais preciso) gerados pelo preguiçoso. Benefícios sociais tão ou até mais relevantes do que os gerados pelos artistas ou pesquisadores da academia. Por preguiça, e para correr logo com este manifesto, que já está tomando demais meu tempo (e o dia lá fora vai tão lindo…), vou tomar emprestadas duas ou três máximas que já escreveram sobre essa entidade cujos direitos estou aqui a defender.

São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo.” (Albert Camus)

Só nas horas de ócio se fazem coisas excelentes.” (André Gide)

A preguiça […] ainda é a melhor forma de combater o capital.

A preguiça […] ainda é a melhor forma de não poluir o planeta.

[…]

Só a preguiça melhora o homem, porque só um homem preguiçoso é um homem que não faz merda.” (Xico Sá)

As sábias palavras do Xico Sá provavelmente fizeram com que a minha causa ganhasse a simpatia de algumas mentes mais progressistas. Uma ou outra, entretanto, ainda insistirá que não há comparação, por exemplo, entre o Bolsa Preguiça e o Bolsa Família ou mesmo as cotas raciais, uma vez que, ao contrário dos preguiçosos, os negros e os pobres são vítimas de injustiças históricas e sociais. Ora essa, digo eu. E não são os preguiçosos também pobres vítimas do acaso? Afinal, que culpa tem o sujeito que nasce preguiçoso? Ele não escolheu nascer assim. É mero refém do destino, quem sabe de uma infelicidade genética (pois é provável que carregue no sangue um gene dominante dos nossos ancestrais indígenas). Se tivessem lhe dado a chance de escolher, preferiria, sem dúvida, sofrer da doença dos americanos protestantes, daqueles que amam trabalhar, que encontram no trabalho o sentido da vida, a sua razão de ser. Seria muito mais fácil para ele, então, sobreviver neste mundo capitalista, injusto e competitivo. Mas o pobre não teve escolha…

Aaai que preguiça do economista liberal que me ataca agora alegando que minha proposta aumentará ainda mais os já exagerados gastos públicos. Muita calma, meu amigo. Muita calma. Apesar de preguiçoso, ou talvez por isso, pensei não apenas nos gastos, mas também na forma de arrecadar os recursos para o programa – tudo dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal, portanto. Antes de apresentá-la, porém, permito-me uma breve digressão. A palavra trabalho tem sua origem no termo latino tripalium (três paus), um instrumento de tortura utilizado no passado pelos romanos. Apesar de algumas controvérsias existentes a respeito da etimologia do termo, para um preguiçoso crônico, pode ter certeza, trabalho é realmente sinônimo de tortura. A própria teoria econômica neoclássica deriva a curva de oferta de trabalho a partir das escolhas dos indivíduos de como alocar seu tempo (limitado) entre uma atividade remunerada (consumo, portanto) e o lazer. Trabalhar, assim, seria abrir mão de lazer, ou seja, um desprazer. Em outras palavras, como li certa feita em um para-choque de caminhão (na época em que os para-choques de caminhão não traziam apenas mensagens religiosas), “se trabalhar fosse bom, não nos pagariam para trabalhar”. Tomo aqui a liberdade de fazer apenas um singelo adendo a essa verdadeira pérola da sabedoria popular: se trabalhar fosse bom mesmo, até pagaríamos para trabalhar, ora essa.

E eis que alguém com a voz melodiosa, num tom sereno e apaziguador, me diz olhando nos meus olhos: meu amigo, trabalhar faz bem. O trabalho, afinal, espanta três grandes males: o vício, a pobreza e o tédio (Voltaire). Ai, ai…. Como diria o ilustre desconhecido Zé Índio, um desses compositores geniais que só o Brasil parece capaz de produzir, se trabalho é sinônimo de saúde, então é melhor deixá-lo para os doentes. E o pior é que existe um tipo de gente (doente?) que realmente gosta de trabalhar. Sim! Gente que chega ao trabalho animada em plena segunda-feira de manhã, marca reuniões para depois das seis da tarde, leva trabalho para casa, para o final de semana. É, gente que, suspeito, não sabe fazer outra coisa da vida. Gente que sente um verdadeiro prazer ao trabalhar, e enriquecer, e consumir, e trabalhar mais, e mais, e mais. O mundo está cheio desse tipo de gente, que tomou conta do mercado de trabalho e tornou ainda mais difícil a já difícil vida do preguiçoso que tem contas a pagar…

Como economista e homem deste tempo de profundo relativismo moral, pergunto: se alguém sente prazer ao trabalhar, não lhes parece justo que ele receba um salário menor do que os demais, que não são lá muito fãs da labuta? Se uns são capazes de se divertir trabalhando, não deveriam eles pagar para que os que veem no trabalho uma cruel forma de tortura não precisem trabalhar? Não é felicidade o que todos buscamos e a felicidade de todos os cidadãos o que as políticas públicas devem mirar? Se uns já são felizes trabalhando, como fazer os preguiçosos felizes senão lhes proporcionando o Bolsa Preguiça?

Sei que muitos de vocês dirão que a minha proposta, ainda que, vá lá, possa ser considerada justa, nunca será economicamente viável, visto que a maior parte da população brasileira iria querer deixar de trabalhar e viver com a mesada do Bolsa Preguiça. É aí que se enganam. Para sobreviver ao tempo livre, à plena liberdade de ir e vir, é preciso criatividade. Vocação, eu diria. E não é qualquer um que está preparado para levar uma vida de preguiçoso e curtir o dolce far niente sem culpa nenhuma. Quantos até tentam, mas voltam correndo ao trabalho após um mísero ano sabático? Quantos não contam angustiosamente os dias para o fim das férias? Quantos não sabem nem o que fazer com os dois dias de folga do final de semana e jogam fora as suas horas livres em consumo inútil, passeios tolos, horas na frente da televisão assistindo a todo tipo de besteira, para na segunda-feira voltar então à extenuante rotina do trabalho. Felizes, apesar de tudo, por poderem se sentir úteis novamente. Embora neguemos, a maior parte de nós nasceu para servir, para se escravizar. E voluntariamente, o que é mais triste.

Em seu ensaio Possibilidades econômicas para nossos netos, de 1930, John Maynard Keynes se arriscou numa previsão de que, ao menos nos países ricos, as futuras gerações teriam pela frente seu real e permanente problema, que seria não mais a satisfação de necessidades básicas para sobrevivência, mas descobrir como, ante a libertação das preocupações econômicas (trabalhar para pagar as contas), ocupar o tempo livre que a tecnologia lhes teria proporcionado, de modo a viver sabiamente e agradavelmente bem. Como quase todo economista que se arrisca a fazer previsões, Lord Keynes errou feio, não só porque, mesmo nos países ricos, ainda haja quem tenha dificuldade para satisfazer suas necessidades básicas, mas também porque, especialmente nos segmentos mais privilegiados da sociedade, todos conectados vinte e quatro horas por dia nos seus notebooks, iPhones, iPads e iCaralhoaquatros, a impressão que se tem é a de que nunca se trabalhou tanto.

Aldous Huxley, contemporâneo de Keynes, em seu clássico Admirável mundo novo, de 1932, já identificava no homem uma tendência à servidão voluntária e nos apresentou em sua obra um futuro distópico no qual, a despeito dos avanços tecnológicos, os homens continuavam presos à rotina do trabalho. Em uma das minhas passagens favoritas do livro, o protagonista, Bernard Marx, um deslocado naquele mundo onde todos parecem bovinamente felizes, questiona um administrador desse “mundo novo” a respeito do porquê de as pessoas ainda trabalharem, uma vez que poderiam ter sido substituídas por máquinas muito mais eficientes. O administrador lhe responde que já haviam experimentado reduzir a jornada de trabalho, mas, com mais tempo livre, o consumo de “soma” (uma espécie antidepressivo) aumentara drasticamente. Ou seja, as pessoas não foram capazes de lidar com o aumento do tempo livre, não conseguiram viver em paz sem suas longas jornadas de trabalho.

Interessante notar que, na distopia de Huxley, a insatisfação de Bernard Marx é fruto de uma falha em seu processo de produção, a qual fez com que ele não conseguisse ser plenamente feliz como as pessoas à sua volta. No mundo de hoje, entre tantos aparentemente satisfeitos com suas rotinas de trabalho extenuantes, consumo exagerado, distração nas redes sociais, podemos encarar o preguiçoso crônico como alguém que nasceu com um defeito de fábrica e, portanto, não está apto para trabalhar e garantir, sozinho, o seu próprio sustento. Por outro lado, ao contrário da maioria, somente o verdadeiro preguiçoso é capaz de aproveitar seu tempo livre e viver sabiamente e agradavelmente bem, desafio imaginado por Keynes para seus netos. Desde que, é claro, ele não seja obrigado a se submeter à tortura diária do trabalho para pagar as contas.

Se o objetivo do Estado é garantir a felicidade da população, ou ao menos as condições para que cada cidadão possa buscar a sua própria felicidade, o Bolsa Preguiça faz-se uma medida necessária e urgente. É preciso aceitar o fato de que uma maioria nasce para formiga, enquanto, uns poucos, para cigarra, e que fazer a pobre da cigarra trabalhar é uma agressão cruel à sua natureza preguiçosa.

Não se deixe, portanto, cegar por seu ressentimento vil (creio que por trás das posições políticas quase nunca há muito mais do que vaidade, ressentimento e autointeresse; ou preguiça, como neste caso). Faça o que nasceu para fazer. Trabalhe, pois, trabalhe, trabalhe muito, trabalhe até os 90 anos, mas deixe tentarem ser felizes os que, ao contrário de você, não vieram ao mundo para jogar seu tempo fora trabalhando. Bolsa Preguiça já!

Em tempo. Vivemos dias aparentemente contraditórios. Ao mesmo tempo em que é urgente a elevação da idade mínima para aposentadoria por causa do envelhecimento da população (pobre preguiçoso…), estudos catastrofistas apontam para uma eliminação sem precedentes de empregos decorrente da revolução tecnológica em curso. Diante do crescimento da desigualdade de renda e da tendência de concentração do capital tecnológico, em alguns países como a Finlândia, por exemplo, já estão sendo discutidas e até testadas políticas de renda mínima universal. Embora menos burocráticas do que políticas como o Bolsa Família e o Bolsa Preguiça, focalizadas nos grupos que realmente precisam do auxílio, as políticas de renda mínima universal, para a qual todos os cidadãos estão elegíveis, tendem a ser menos justas e menos eficientes, conforme demonstrado na figura acima.

Além disso, se “só o trabalho pode produzir riquezas” (lema estampado na matriz do banco Bradesco), o Bolsa Preguiça, quando comparado a outras políticas vigentes – tais como os juros altos, a tributação generosa sobre aplicações financeiras e heranças, as aposentadorias precoces e integrais para políticos e funcionários públicos ou a contribuição sindical compulsória paga por empregadores e empregados, por exemplo –, é uma forma mais justa e mais barata de redistribuir essas riquezas entre os que trabalham e os que não têm lá muita disposição para trabalhar.

  Vitor Augusto Meira França– Economista pela USP, mestre em economia pela FGV-SP e não se orgulha de ter dois empregos e trabalhar mais de 60 horas por semana.
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