A primeira (e mais importante) lição do comércio internacional

As longínquas negociações do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia foram concluídas. Parafraseando uma expressão futebolística: só falta ratificar. Assim, o comércio internacional tornou-se pauta discutidíssima na mídia e, consequentemente, surgiram hordas de opinadores: “Acordo bom para quem? Só para você comprar um smartphone mais barato, o seu vizinho que trabalha na indústria nacional irá minguar no desemprego.” Curiosamente, esse tipo de raciocínio ignora a primeira (e mais importante) lição do comércio internacional: vantagens comparativas.

A origem da lição remete à Inglaterra do século XIX, parte da obra do economista David Ricardo e que aprimorou as ideias de Adam Smith a respeito do comércio internacional. Apesar disso, vamos importar os ensinamentos de Ricardo para o contexto contemporâneo com o seguinte exemplo hipotético:

Imagine dois países, Brasil e Alemanha, que são pertencentes aos dois blocos econômicos em questão: Mercosul e União Europeia, respectivamente. Para fins didáticos, considere que ambos os países podem optar pela produção de dois bens distintos: soja e carros. Lembre-se, a primeira lei da economia é a escassez, ou seja, é preciso decidir o que produzir respeitando os limites impostos pelos recursos disponíveis.

Digamos que o Brasil, caso dedicasse todos os recursos disponíveis para tal, seria capaz de produzir 30 unidades de soja num único ano. Sob as mesmas condições iniciais, caso o país se dedicasse à produção de carros, somente seria possível produzir 10 unidades desse bem. Portanto, dividindo ambos os montantes por 30 chegamos à seguinte conclusão: o custo de oportunidade para produzir 1 unidade de soja equivale a ⅓ da unidade de carro. Em outras palavras, para produzir 1 unidade de carro é necessário abrir mão da produção de 3 unidades de soja.

Por outro lado, a Alemanha seria capaz, num único ano, de produzir 10 unidades de soja. Contudo, o país europeu leva vantagem na produção de carros, sendo capaz de produzir 30 unidades durante o mesmo período. Logo, seguindo o mesmo raciocínio do caso brasileiro, para que a Alemanha produza 1 unidade de soja seria necessário abrir mão de 3 unidades de carro.

Em última instância, notamos que:

  • O Brasil possui vantagem comparativa em relação à Alemanha na produção de soja;
  • A Alemanha possui vantagem comparativa em relação ao Brasil na produção de carros;

Isso não acontece porque o Brasil produz mais unidades de soja ou a Alemanha produz mais unidades de carro: isso seria uma condição de vantagem absoluta. Na verdade, é possível dizer que há vantagem comparativa porque consideramos o menor custo de oportunidade. Ou seja, quando comparamos aquilo que cada país precisa abrir mão para produzir um dos bens, a vantagem comparativa é conferida àquele que abre mão de menos unidades do bem alternativo.

O desdobramento lógico dessas considerações é: via de regra, a especialização produtiva desses países é economicamente vantajosa para ambos. Afinal, brasileiros querem consumir carros e alemães querem consumir soja. Uma vez que Brasil e Alemanha NÃO estabelecem relações comerciais, temos o seguinte cenário:

  • Caso o Brasil opte também por produzir carros, mesmo sem vantagem comparativa nesse bem, o montante máximo possível é de 10 unidades;
  • Caso a Alemanha opte também por produzir soja, mesmo sem vantagem comparativa nesse bem, o montante máximo possível é de 10 unidades;

Num cenário alternativo, onde esses países se especializam e estabelecem relações comerciais, temos:

  • Caso o Brasil opte — exclusivamente — pela soja, bem no qual tem vantagem comparativa, serão produzidas 30 unidades;
  • Caso a Alemanha opte — exclusivamente — pelos carros, bem no qual tem vantagem comparativa, serão produzidas 30 unidades;
  • Assumindo um preço de duas unidades de soja para cada unidade de carro, o Brasil pode comercializar 20 unidades de soja pelos mesmos 10 carros que produziria sozinho;
  • Assumindo o mesmo preço, a Alemanha pode comercializar 5 unidades de carro pelas mesmas 10 unidades de soja que produziria sozinha;

A especialização produtiva e o estabelecimento de relações comerciais são economicamente vantajosos para ambos os países porque permite um resultado inatingível no primeiro cenário:

  • O Brasil terminaria com 10 unidades de cada bem, enquanto o primeiro cenário seria de 10 unidades de carro e nenhuma unidade de soja;
  • A Alemanha terminaria com 25 unidades de carro e 10 unidades de soja, enquanto o primeiro cenário seria de nenhuma unidade de carro e 10 unidades de soja;

Observe que o exemplo hipotético anterior abstrai diferenças entre os insumos e a produtividade de ambos os países. Ainda assim, digamos que a Alemanha invista em educação e consiga aumentar seus níveis de produtividade. Num novo cenário, a Alemanha pode produzir, caso deseje, até 40 unidades de soja ou carro. Isso quer dizer que o Brasil está condenado, pois, não precisam mais da nossa soja? NÃO.

Ainda que o país europeu leve vantagem (absoluta) sobre o sul-americano na produção de ambos os bens, a combinação especialização-comércio continua sendo o caminho mais vantajoso (comparativamente): o novo custo de oportunidade alemão é equiparado entre os bens, para produzir 1 unidade de soja é preciso abrir mão de 1 unidade de carro. Todavia, o caso brasileiro permanece o mesmo: 1 unidade de soja equivale a ⅓ da unidade de carro. Em outras palavras, para produzir 1 unidade de carro é necessário abrir mão da produção de 3 unidades de soja.

Consequentemente, dado que o preço de mercado do carro é de 2 unidades de soja, a Alemanha pode obter 2 unidades da segunda pelo preço de 1 unidade do primeiro, terminando, por exemplo, com 39 unidades de carro e 2 de soja. No caso alternativo, onde a Alemanha negligencia o comércio e produz por conta própria as mesmas 2 unidades de soja, terminaria com uma unidade de carro a menos: 38. Isso é, numa situação economicamente inferior. Dado que as condições brasileiras são as mesmas, a conclusão anterior continua válida: especialização produtiva e trocas comerciais constituem uma situação ganha-ganha para sul-americanos e europeus.

O comércio internacional é um assunto querido aos economistas justamente pela vasta literatura que torna a seguinte afirmação, grosso modo, trivial: uma maior integração ao comércio internacional é benéfica para todos os envolvidos. É claro, isso não quer dizer que outros fatores perdem relevância.

Num país cuja infraestrutura é precária, de nada adianta o acesso ao mercado internacional se os produtos mais baratos não chegam aos mais pobres no interior do território. Enquanto isso, os ricos sempre têm alternativas. Existem custos, empresas e empregos são eliminados diante da competição, outras [empresas] aprendem com as estrangeiras — novas competidoras — e ganham produtividade graças à tecnologia vinda do exterior.

Cá em terras tupiniquins, opinadores de Internet e velhos caudilhos da política insistem em defender o protecionismo “em nome do pobre trabalhador”. O acordo entre Mercosul e União Europeia já foi generoso com os inevitáveis perdedores da maior integração comercial. Dito isso, a literatura sustenta a regra e a literatura aponta as exceções. Denunciar possíveis malefícios do processo de abertura comercial sem reconhecer seus inúmeros benefícios é, para dizer o mínimo, ignorar a lógica tão prezada por David Ricardo.

Como bem observou Paul Krugman, a evolução via seleção natural está para a biologia, assim como o ganho mútuo de riqueza via comércio internacional e especialização produtiva, pautados na ideia de vantagem comparativa, está para a economia. Mas, digamos que se trata de uma ideia difícil…

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.

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