Ilusões Estatísticas: O Mito do Gap entre Salários e Produtividade nos Estados Unidos

Nos últimos anos tem virado moda as pessoas construírem suas narrativas em torno de dados. Usar a Estatística finalmente deixou de ser algo reservado apenas para nerds em laboratórios de pesquisas sociais aplicadas e passou a ser uma prática comum no mundo dos negócios e até no debate público.

Em todo canto agora é possível ver coisas “baseadas em evidências” e discussões de políticas públicas baseadas em alguma forma de métrica.

Todavia, a maioria das pessoas costuma pegar tais dados como fatos objetivos por si só. Basta uma pessoa ver uma estatística e, pelo mero fato de ser uma estatística, ela acredita que tal deve ser verdadeiro. Existe, ao meu ver, pouco preparo crítico por parte da maioria das pessoas em julgar os dados, em se perguntar o que exatamente aquela métrica está tentando representar. Isso fica bastante claro justamente nas discussões sobre políticas públicas pela população nas redes sociais.

Um exemplo da confusão que pode ser feita pelo tratamento inadequado dos dados é a narrativa, bastante popular nas redes sociais, de que o “sonho americano” falhou para a classe média dos Estados Unidos devido o trabalhador americano médio estar produzindo mais do que nunca e ganhando basicamente a mesma coisa. Usualmente isso é utilizado para “refutar” a relação que os economistas ortodoxos colocam entre crescimento da produtividade e crescimento dos salários reais.

Essa narrativa econômica é bastante popular entre economistas progressistas americanos e tem aparecido também na mídia econômica brasileira e até mesmo em debates jurídicos e em organizações internacionais. Essa narrativa é usualmente ilustrada com o gráfico abaixo, onde é computado as séries temporais da produtividade do trabalho e os salários dos trabalhadores da produção nos Estados Unidos.

Todavia, do ponto de vista daquilo que se busca representar, tal narrativa está infundada devido problemas métricos.

Primeiramente, os trabalhadores da produção ou operacionais não são os únicos trabalhadores da economia americana. A medida acima captura apenas os salários desses trabalhadores e não de trabalhadores em cargos de gestão, profissionais liberais ou cargos de especialização; os quais geralmente apresentam taxas de crescimento maiores nos salários.

Segundo, os trabalhadores não ganham apenas seus salários líquidos. Pense, caro leitor, você trabalha apenas por salário ou também pelos benefícios de vale-alimentação, seguro de saúde coletivo, vale-transporte, bônus de metas batidas, etc? Esses benefícios não são capturados pela medida dos salários por hora de produção. Uma medida mais adequada são os rendimentos reais totais recebidos por hora trabalhada considerando todos as classes de trabalhadores. Se computarmos isso no gráfico acima, ele já sofre uma mudança.

O terceiro problema é que as medidas de rendimentos reais e a medida de produtividade utilizam deflatores de índice de preços diferentes para determinar suas séries de tempo reais (ou seja, sem influência de inflação). Isso faz toda diferença ao se avaliar a teoria econômica ortodoxa, pois ela afirmar justamente que os trabalhadores, teoricamente, conseguiriam comprar os produtos que eles mesmos produzem.

Ou seja, que os salários reais irão crescer seguindo a produtividade real do trabalho.

No entando, os rendimentos reais são deflacionados pelo índice de preço do consumidor (CPI), enquanto que a produtividade real é deflacionada pelo índice de preço da produção (PPI). Isso faz toda diferença, pois bens como máquinas e equipamentos, que compõe o índice de preços da produção, tendem a ter uma inflação menor do que bens como casas e alimentação, os quais compõe o índice de preços do consumidor.

Se deflacionarmos a série de tempo dos rendimentos por hora do trabalho pelo índice de preços da produção, teremos então a medida dos rendimentos de produção reais dos trabalhadores; ou seja, aquilo que eles efetivamente ganham dado sua produção e para fins de consumo da mesma. Se computarmos essa medida no gráfico anterior, o “gap” entre salários e produtividade desaparece exatamente como previsto pela teoria econômica.

Logo, toda essa narrativa sobre a divergência entre salários e produtividade depende essencialmente da forma como você mede as coisas. A depender de qual dado salarial você considera ou qual deflator de preços você escolhe a teoria econômica tradicional pode estar validada ou refutada. Todavia, quantas vezes a maioria das pessoas faz essa pergunta?

Creio que não o suficiente para um uso adequado da Estatística no debate público.

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Yogh - Especialistas em WordPress