As medidas da equipe econômica do governo interino de Michel Temer estão sendo anunciadas aos poucos. Muito se temia, em diversos setores, o anúncio imediato de aumento de impostos e cortes de benefícios. Entretanto, optou-se por uma terceira via, quase que não compreendida pelos representantes da mídia que estiveram presentes à entrevista coletiva que anunciou tais medidas: o teto, em termos reais, para os gastos públicos. O que isso significa, na prática: a otimização dos desembolsos públicos precisa ocorrer urgentemente, e, embora pareça ser um cenário impossível para muitos setores que alertam sobre possíveis retrocessos, esse aprendizado será positivo. Pela primeira vez em gerações teremos como ideia central o controle das despesas e não o aumento das receitas [1].
Desde a redemocratização brasileira – que culminou, em termos legais, na Constituição Cidadã de 1988 – a pauta de discussões de todos os governos passou a incluir diversos aspectos de atendimento social. Isso se deve ao movimento de universalização dos serviços públicos de alguns setores:
Capítulo II Dos Direitos Sociais
Art.º6 “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Em um olhar histórico, vemos que a carga tributária em porcentagem do PIB aumenta há muitos anos: desde o final da década de 1940 até os dias atuais, ela mais que dobrou (saímos da proximidade de 15% e estamos próximos de 35% atualmente). Aliás, não foi o pós-redemocratização um período isolado de elevação considerável da carga tributária:
[caption id="attachment_6962" align="aligncenter" width="575"] Fontes: [2] e [3]. Elaboração própria.[/caption]Essa evolução histórica mostra claramente como cresceu, nas últimas sete décadas, a participação do Estado na economia. Existem pontos positivos (como a universalização de serviços) e pontos negativos (más alocações que ocorrem) deste avanço, mas o mérito da questão a ser discutida aqui é outro: a quase ausência de métricas sobre os programas governamentais faz com que não exista uma adequada priorização dos desembolsos (uma discussão mais ampla sobre este problema e seus impactos nos últimos dez a doze anos foi feita em um Roda Viva com o economista Marcos Lisboa, recentemente [4]).
Como resultado infeliz dessa negação de mensurar o que estaria dando certo e o que não estaria, toda e qualquer redução de arrecadação faz parecer com que todos os programas e direitos sociais estejam efetivamente ameaçados (como Paulo Frateschi, um dos fundadores do PT, apresentou sobre retrocessos que imagina que ocorrerão no país com a redução dos gastos governamentais em outro Roda Viva, uma edição que promoveu a discussão dos desafios do governo interino de Michel Temer [5]).
Neste mesmo Roda Viva que discutiu o que viria a seguir no governo interino, Alexandre Schwartsman (ex-diretor do Banco Central do primeiro mandato de Lula) lembrou que, em 2005, foi justamente Dilma Rousseff quem afirmou ser “rudimentar” o plano de longo prazo de estabilização de despesas proposto por Antonio Palocci e Paulo Bernardo [6] – ministros da Fazenda e do Planejamento, à época. Esta opinião continua até os dias atuais, como demonstra uma recente declaração da presidente afastada em relação ao assunto [7].
Uma evidência de que a otimização tem espaço é o gráfico abaixo, que mostra como a evolução dos gastos do governo esteve acima do PIB nos anos recentes – o que, quando não impactou em aumento da carga tributária, resultou em aumento da dívida pública:
[caption id="attachment_6963" align="aligncenter" width="539"] Fonte: [8][/caption]A otimização de gastos proposta coloca na pauta de prioridades uma questão de difícil execução em nosso país: precisamos analisar os gastos públicos de maneira mais detalhada para elencar o que deve seguir em frente e o que pode ser descontinuado. As dificuldades envolvidas neste processo são basicamente duas: não há, na média, mensuração de melhoria de vida gerada por muitos dos programas (muitas vezes o que existem são dados de população atendida) e, ainda mais difícil do que isso, existe uma clara resistência de muitos setores a sofrerem cortes – ou, em outras palavras: todos os setores sabem que a conta não está fechando e todos estão dispostos a apontar o que poderia ser cortado, mas nenhum setor admite que seus recursos podem ser diminuídos (mesmo quando realmente for o caso). Porém, mesmo sendo de difícil execução, esta é uma atitude necessária para rever o que se pensa ser a solução de todo e qualquer problema orçamentário para qualquer governo neste país que gaste muito: o tradicional “empurre-se a conta para as próximas gerações via dívida pública ou para a atual via aumento de impostos”.
O chamado Nominalismo proposto por Henrique Meirelles – de manter os gastos públicos em consonância com o crescimento da inflação e não mais do que isso – abre um novo campo de possibilidades para o pensamento sobre os gastos públicos em nosso país: é preciso pensar sim sobre a efetividade dos gastos públicos e, mais do que isso, precisam deixar de ocorrer aqueles que não apresentarem o efeito desejado. Friso aqui que este processo de elencar prioridades para os gastos públicos realmente apresenta grandes dificuldades, mas, parafraseando Armínio Fraga, a decisão atual não é entre fazer ajustes ou “ser feliz”, mas sim entre fazer ajustes ou continuar arrebentando a economia – e os sinais de alerta são, por exemplo, os R$170,5 bilhões de déficit previstos para 2016, os 11 milhões de desempregados, nossa taxa de juros em 14,25% ao ano e a previsão de uma queda de mais de 3,5% do PIB pelo segundo ano consecutivo.
Ficam aqui duas breves reflexões a quem não acredita que a redução da participação do Estado na economia – o que ocorre com a limitação e otimização de seus gastos, que são custeados por todos nós – poderia trazer reais benefícios: se a enorme gama de problemas brasileiros não se resolveu até hoje com uma elevação substancial da carga tributária e da dívida pública (ou seja, com a atuação governamental direta), é possível imaginar realmente que o governo será capaz, com mais recursos, de resolvê-los? E, para um país que tem a marca de ser um dos piores em retornos dos impostos (“ganhamos” recentemente, pela quinta vez seguida, o prêmio de ser o pior país do mundo neste quesito [9]), é uma real panaceia aumentar a porcentagem do que estes consomem da produção brasileira?
Serão tempos complexos esses de priorizar por projetos os gastos públicos e, realmente, faltam muitos outros aspectos também a serem discutidos no espectro político-econômico para que possamos sair com sustentabilidade da atual situação [10] – felizmente, o governo interino de Temer tem consciência disso [11]. Mas trazer o orçamento público ao realismo que qualquer família ou empresa se depara todos os dias é algo que vai nos fazer bem como nação no médio-longo prazo, uma vez que irá permitir uma atuação governamental mais focada na realização de problemas reais e não na formulação de números astronômicos que ficam bem encaixados em programas eleitorais somente – como foi o caso deste anúncio de R$200 bilhões de investimentos em infraestrutura no ano anterior, resultado de uma “reciclagem” de um mesmo plano não executado em 2012 [12]. Todos os brasileiros sabem o que é restrição de orçamento e sentem o que ocorre quando não há controle e nem priorização diante dessa limitação (as dívidas surgem) – está na hora do governo que os rege também procurar entender essa questão.
Sobre o autor: Caio Augusto de Oliveira Rodrigues é bacharel em Economia Empresarial e Controladoria pela FEA-RP/USP e criador do blog Questão de Incentivos (https://questaodeincentivos.wordpress.com/ e https://www.facebook.com/QuestaoDeIncentivos/?fref=ts)
Fontes:
Evolução da carga tributária brasileira: [2] – IBGE (dados de 1947 a 2011) http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=SCN49 ; [3] – Receita Federal (dados de 2012 a 2014) http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/29-10-2015-carga-tributaria-2014
[4] Roda Viva – Marcos Lisboa https://www.youtube.com/watch?v=MioU_7uQ0eE
[5] Roda Viva – Governo Temer https://www.youtube.com/watch?v=RzoO3qjV6XY
[6] http://blogs.estadao.com.br/a-economia-no-novo-governo/?p=63
[8] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-pouco–mas-e-o-comeco,10000053250