Lugar de mulher é na universidade?

Gabriela Biazi*

Num contexto em que as mulheres constituem maioria no ensino superior, faz sentido falar em desigualdade de gênero na universidade? Afinal, ainda que essa mudança seja bastante recente – já que a chamada “inversão do hiato de gênero” ocorreu apenas na década de 1980[1] -, passamos de um cenário de acentuada exclusão das mulheres a um novo ciclo histórico no qual somos a maioria do corpo discente nas instituições de ensino superior. Em 2013, do total aproximado de 6 milhões de matrículas, 3,4 milhões foram de mulheres nos cursos de graduação[2]. Embora tais números possam nos levar a crer no contrário, um olhar mais atento é suficiente para compreender que ainda é necessário refletir sobre como e de qual forma a universidade brasileira reproduz a desigualdade de gênero.

Uma das facetas mais evidentes do machismo na universidade é a violência sexual contra as estudantes. Tais violências se tornaram públicas por força de insistentes denúncias por parte de vítimas e da atuação de grupos feministas e redes de apoio organizadas por mulheres nas universidades.  Nesses casos, a regra é o total despreparo institucional das universidades para lidar com o problema, traduzido na ausência de políticas e mecanismos institucionais específicos de prevenção e de apuração de responsabilidade em âmbito administrativo. Além disso, a falta de transparência sobre o tipo de resposta que tem sido oferecida aos casos concretos e o entendimento de que a universidade não tem qualquer responsabilidade em prevenir ou coibir tais comportamentos também são graves sintomas desse despreparo.

Em 2015, a ONG Artigo 19 apresentou pedidos de informação à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) acerca de denúncias de estupro recebidas pelas instituições. Segundo a organização:

“Tanto a Unicamp quanto a Unifesp, que possuem 15.580 e 9.772 alunos respectivamente, responderam que apenas dois casos foram registrados durante todo o período em cada uma das universidades – sendo que em nenhum deles houve a abertura de processo administrativo e muito menos algum tipo de punição. Em sua resposta, a Unicamp chegou a dizer que ‘não é prerrogativa da Prefeitura Universitária a instituição ou aplicação de penalidades seja a alunos ou servidores’”[3].

Com conclusões que se opõem a tais narrativas institucionais, a pesquisa “Violência contra a mulher no ambiente universitário”, realizada em 2015 pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, ratificou o diagnóstico que já vinha sendo insistentemente formulado e propagado por coletivos, militantes e redes de mulheres nas universidades. Entre os dados relevantes, a pesquisa aponta que 67% das mulheres entrevistadas declararam já ter sofrido algum dos tipos de violência descritos pelos pesquisadores[4].

A pesquisa também indica que há outras formas de desigualdade de gênero que afetam a vida acadêmica das estudantes: 49% das mulheres entrevistadas relataram já ter sofrido “desqualificação intelectual” no ambiente acadêmico, fato indicador de que persistem dinâmicas sociais que reproduzem, de forma muito concreta, o mito de que a intelectualidade é uma prática masculina por excelência. Em episódios recentes, estudantes coletaram relatos de falas preconceituosas ditas pelos próprios docentes nas salas de aula. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, um deles afirmou que “homem não sabe por que bate, mas mulher sabe por que apanha”. Em outro caso, que ocorreu na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das alunas ouviu a frase “para uma menina, você projeta muito bem”[5].

Nesse sentido, surgem investigações sobre como as estruturas sociais de validação do conhecimento considerado legítimo privilegiam os homens e as interpretações sexistas do mundo. São relevantes, por exemplo, as discussões sobre práticas pedagógicas e postura dos professores em sala de aula[6], análises sobre conteúdo curricular, investigações sobre maior probabilidade de homens terem suas obras citadas[7], entre outras. Além disso, há importantes análises sobre a desigual distribuição de homens e mulheres pelas áreas do conhecimento, que apontam nichos no qual ainda há acentuada sub-representação das mulheres. É o caso, por exemplo, das Engenharias: em 2014, as mulheres somavam apenas 34,77% do corpo discente nos cursos de graduação nas instituições federais[8].

Outro aspecto relevante são as políticas de permanência na universidade, cuja ausência afeta mais drasticamente a vida das mulheres, principalmente as das mais pobres e das mães, já que vivemos em um contexto social em que as recebem menos que os homens e, por serem as principais responsáveis pelo trabalho doméstico, trabalham mais horas. Estudo recentemente publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstra que “[…] a escala de remuneração manteve-se inalterada em toda a série histórica: homens brancos têm os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras”[9]. Outro estudo publicado pelo mesmo instituto revela que as mulheres dedicam mais horas às tarefas domésticas que os homens: o “tempo gasto com serviços de casa chega a quase o dobro mesmo quando a comparação é entre mulheres ativas e homens inativos”[10]. Nesse contexto, sem dúvida, o fechamento de creches – a exemplo do que vem ocorrendo na Universidade de São Paulo (USP)[11] – e os cortes em outros auxílios aos estudantes afetarão todo o corpo discente, mas os principais atingidos terão sexo e cor.

Por fim, cabe ressaltar que a presença majoritária das mulheres nos cursos de graduação não se reflete necessariamente na composição do corpo docente e na ocupação dos postos de poder na Universidade. Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, no ano de 2015, as mulheres constituíam 46,4% do corpo discente da graduação, 51,5% da pós-graduação e 40,9% do corpo docente com dedicação exclusiva, mas apenas 23,7% dos postos de “senior leadership” (cargos de reitor da Universidade, vice-reitor, decanos, diretores de ensino e pesquisa, diretores das faculdades e superintendentes) e 15,4% dos cargos de professor titular eram ocupados por mulheres[12].

Esse exemplo demonstra que é fundamental examinarmos como a universidade brasileira produz e seleciona seus quadros, inclusive a partir da perspectiva de gênero. Pesquisa realizada por Marília Moschkovich e Ana Maria Fonseca de Almeida acerca do quadro docente da Unicamp afirma a “necessidade de se examinar a maneira como mudanças organizacionais, em geral, e a implementação de políticas orientadas para favorecer docentes do sexo feminino, em particular, podem contribuir para reforçar ou abolir diferenças entre as carreiras de docentes de cada sexo”[13].

Esse retrato, brevemente traçado, indica a urgência de incorporarmos reflexões sobre a desigualdade de gênero no mundo acadêmico – e também sobre desigualdade racial e a realidade de outros grupos excluídos ou marginalizados – às agendas de discussão sobre modelos e reformas da universidade (ou ao menos àquelas comprometida com as demandas por democratização do ensino), bem como construir e aprofundar diagnósticos sobre a questão. Do nosso lado, seguiremos lutando coletivamente por nossos espaços, por nossas vozes e para que a universidade seja para qualquer uma[14].

Gabriela Biazi é Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora do Grupo Constituição, Política e Instituições e do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia e uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos de Gênero, todos da Faculdade de Direito da USP. Durante a graduação, foi membra do Coletivo Feminista Dandara.

Notas [1] http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1052.pdf [2] http://www.brasil.gov.br/educacao/2015/03/mulheres-sao-maioria-no-ingresso-e-na-conclusao-de-cursos-superiores [3] http://artigo19.org/blog/2016/01/08/violencia-contra-a-mulher-na-universidade-um-problema-invisivel/ [4]http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2015/12/Pesquisa-Instituto-Avon_V9_FINAL_Bx.pdf [5] http://www.geledes.org.br/professores-sao-acusados-de-racismo-machismo-e-homofobia-no-direito-na-geografia-docente-teria-ligado-haitianos-a-macacada/#gs.flM1TV4; https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/estudantes-espalham-cartazes-por-universidade-para-denunciar-professores-machistas/ [6] http://www.law.harvard.edu/students/experiences/FullReport.pdf; http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1255&context=yjlf [7] https://www.washingtonpost.com/news/monkey-cage/wp/2013/10/01/how-to-reduce-the-gender-gap-in-one-relatively-easy-step/?utm_term=.986c633c4c92 [8] https://www.nexojornal.com.br/grafico/2016/08/25/Qual-%C3%A9-o-perfil-dos-alunos-das-universidades-federais [9] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29526&catid=10&Itemid=9 [10] http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/04/trabalho-domestico-permanece-sendo-uma-atividade-feminina-aponta-estudo [11] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1851010-usp-anuncia-fechamento-de-creche-e-funcionarios-ocupam-espaco.shtml [12]http://www.heforshe.org/~/media/heforshe/files/event/2016/heforshe_impact10x10x10_parityreport_university_2016.pdf [13] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52582015000300749&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. [14] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um

IMPORTANTE: As informações contidas nesse texto são do autor do artigo, e não necessariamente refletem a opinião do Terraço Econômico

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