Não existe estacionamento grátis!

O grande prêmio Nobel, Milton Friedman, em um de seus vários momentos de brilhantismo proferiu a frase que viraria a ser bordão na ciência econômica: “não existe almoço grátis!”. Tenho alguns colegas que tatuariam essa frase no braço, pois ela sintetiza um conceito fundamental para a nossa triste ciência: o custo de oportunidade. Porém, são poucos os economistas que usam essa frase para criticar a maior aberração existente em uma cidade: os estacionamentos grátis.

Por estacionamento grátis me refiro aos acostamentos de ruas e avenidas usados para estacionamento de carros nas grandes cidades. Quem nunca viu um carro estacionado nas laterais de uma rua ou de uma avenida, ou mesmo estacionou assim? Quem nunca teve dificuldade de dirigir em uma via urbana por causa de carros tomando o espaço de circulação? Essa é a realidade da maioria das grandes cidades no mundo inteiro.

O que as pessoas, inclusive muitos economistas, não percebem nessa situação é que aí existe um problema de “almoço grátis”. O consumo de ruas (isso é, sua capacidade de andar e trafegar em veículos por elas) é geralmente livre e gratuito, não existe custos relativos,  uma vez que não existe preço para andar por elas.

O consumo de ruas

Todavia, existe um custo ao “se consumir uma rua”. Se ando em uma calçada ou estaciono meu carro em uma rua, o benefício de tal ação será unicamente meu, mas aqueles de quem estou tomando espaço terão um custo.

Ao tomar uma vaga lateral, faço com que as outras pessoas que também querem uma vaga precisem gastar mais tempo e recursos (sobretudo combustível) procurando outra vaga. Tempo e recursos esses que poderiam ser gastos fazendo outras coisas.

Os economistas chamam isso de externalidade negativa do consumo de um bem. Por mais que exista um benefício individual do consumo de ruas e avenidas, existe um custo social alto para tanto; uma vez que a maioria das outras pessoas irá internalizar os custos da ação de um único indivíduo.

A maioria dos economistas tendem a não prestar atenção nesse problema por considerar que ruas e avenidas são bens públicos. Ou seja, vias públicas são bens cujo consumo não é rival (meu consumo não rivaliza com sua capacidade de consumir o mesmo) ou excludente (não existe um custo para o consumo daquele bem) [1].

Todavia, vias públicas não são bens públicos. Seu consumo é rival (pelas leis da física, não posso estar em duas vagas de estacionamento ao mesmo tempo) e altamente excludente (existe um custo para o consumo desse bem).

Ao contrário de um bem público, o sistema de preços e o mercado provêm incentivos para que agentes privados se utilizem de tais bens de maneira ótima. Basta ir a qualquer grande cidade que você verá, não estranhamente, que toda grande via pública é pontilhada por estacionamentos privados. 

A correta classificação desses bens dentro da economia é como recurso comum, um bem de acesso livre mas passível de sofrer da tragédia dos comuns (quando o acesso livre a um recurso ou bem causa custos sociais maiores que o benefício individual do consumo dos mesmos). O que seria o trânsito se não um grande problema de ação coletiva, afinal?

A ilusão dos bens públicos e os custos sociais 


Essa ilusão dos bens públicos no caso das ruas e avenidas tem custos sociais bastante concretos. Como colocou Donald Shoup, no livro “The High Cost of Free Parking”, cerca de 30% do congestionamento nas grandes cidades americanas é causado por pessoas circulando nas vias enquanto procuram uma vaga de estacionamento.

Além disso, ele estima que 47.000 galões de gasolina (ou 730 toneladas de carbono) sejam gastos, apenas nos Estados Unidos, anualmente só com os custos de procura de vagas de estacionamento [2]. E, considerando que a manutenção dessas vagas de graça tenha um custo, Shoup estima que o governo americano gasta em média 127 bilhões de dólares mantendo esses “subsídios” ao estacionamento grátis.

Como não se trata de um bem público, a única forma de solucionar o problema é por meio do sistema de preços. A precificação de vias públicas é algo bastante interessante, sobretudo para aqueles já familiarizados com a teoria dos leilões. Em 1954 o prêmio Nobel, William Vickrey, escreveu um artigo, pelo qual ganhou o prêmio, em que teorizava um sistema de precificação de estacionamentos em ruas.

Segundo Vickrey, o preço dos estacionamentos deveria ser determinado em nível tal que, para manter um nível de vagas livres suficientes, sempre houvesse um custo marginal adicional para as pessoas (a pessoa que tira o carro de casa para comprar pão a 3 quarteirões de distância).

Quando o custo marginal for menor que o nível de equilíbrio, o estacionamento será um bem público. Porém, quando ele for maior,  se tornará um recurso comum. Uma vez que a oferta de estacionamento é fixa, um aumento do custo marginal implica elevação de preço a ser internalizada pelo consumidor. 

O mercado de vagas de estacionamento

Assim, Vickrey sugere que se adote um sistema de precificação capaz de acompanhar as modificações dos custos marginais do estacionamento conforme os equilíbrios de jogo forem mudando [3]. É seguindo essa ideia que muitas cidades adotam o sistema de estacionamento rotativo, a famosa Zona Azul. 

A ideia do estacionamento rotativo consiste em precificar o aumento dos custos marginais de estacionar, fazendo com que exista um desincentivo para as pessoas tirarem seus carros de casa para atividades com pouca importância ou retorno. Quem afinal é que quer pagar R$ 1 por hora apenas para comprar alguma coisa 2 quarteirões de casa?

Outra medida é criar “barreiras de entrada” ao consumo de ruas. Singapura é notória nesse tipo de política, elevando o preço relativo dos carros para criar um desincentivo a seu consumo e, consequentemente, ao consumo de estacionamentos.

Essa última política, todavia, é problemática uma vez que o governo não tem como discriminar corretamente entre aqueles que tem um carro por mero prazer aquisitivo e aqueles que realmente precisam de um veículo. A ideia da precificação pública é que a receita arrecadada poderá ser utilizada para investimentos públicos que possam diminuir o custo marginal do estacionamento.

O professor Shoup recomenda que esses investimentos sejam aqueles que reduzam a pressão da demanda por transportes individuais nas vias públicas, como ampliação das linhas de metrô e ônibus e um aumento da oferta de ruas e avenidas.

A outra solução é bastante simples: privatizar as ruas e avenidas. A maioria das pessoas que estão lendo agora devem estar pensando que isso é uma solução radical demais (posso até ver algumas expressões de repulsa), mas basta lembrar que pelo mesmo problema as rodovias foram privatizadas. E, até onde consta, com resultados melhores do que quando administradas pelo setor público.

Os operadores privados, que já compensam as falhas de governo em prover estacionamento em menor nível, poderiam perfeitamente administrar blocos de vias públicas (como bairros), de forma a prover de maneira ótima a oferta de vias públicas.

Grande parte dos economistas veria essa proposta como radical demais e tola, uma vez que ao conceder os direitos de propriedade sobre uma determinada via, o agente privado se torna detentor do monopólio sobre aquele espaço e do poder de discriminar entre consumidores por meio do controle de preços.

Não obstante, isso ignora dois pontos. Primeiro, uma via pública enfrenta a competição das outras vias públicas próximas a ela. Tirando consumidores extremamente específicos (que, óbvio, são uma minoria dos consumidores), tanto faz você estacionar na Cidade Jardim ou na Faria Lima se seu objetivo for ir ao Iguatemi São Paulo. Assim, no curto prazo, o poder de mercado sobre as vias é bastante diluído.

Mesmo se houvesse barreiras de entrada no mercado de vias, é bastante plausível deduzir que, considerando o mercado de construção livre de barreiras institucionais, o aumento dos rendimentos dos monopólios em longo prazo irá atrair empreendedores urbanos que irão investir nos já conhecidos off-street parking, os estacionamentos privados tradicionais.

Vale lembrar que o setor privado pode realizar as precificações em leilão, de forma semelhante e até mais eficiente do que o Estado. Um exemplo disso são os aplicativos de estacionamento em San Francisco, Califórnia. 

Ainda que tenham sido recentemente banidos, os aplicativos de estacionamento forneciam o serviço de leilão das informações da disponibilidade ou não de  vagas de estacionamento próximas de forma muito semelhante ao sistema de precificação de Vickrey. Assim, é perfeitamente possível que o setor privado assuma essas funções tradicionalmente atribuídas ao setor público de forma competitiva.

Segundo, o oligopólio privado é mais eficiente que o monopólio estatal. Afinal, as rendas de monopólio já existem mesmo sem a precificação das ruas e avenidas. 

O monopolista é aquele que consegue a vaga, maximizando sua renda por meio da elevação do preço relativo de estacionamento para os outros consumidores. Se ocorrer a privatização, o que  muda é o tipo de renda e seu destino, uma vez que o proprietário das ruas poderá reinvestir seu lucro com um conhecimento das necessidades da demanda de seu mercado de forma muito melhor do que o distante burocrata estatal [4].

Seja qual for a solução adotada, o importante é que algo seja feito. Economistas e urbanistas precisam abandonar a ilusão dos bens públicos e deixar o sistema de preços fazer seu trabalho. Afinal, quem paga por esse estacionamento grátis de alguns, no final das contas, somos todos nós.

Notas

[1] GIAMBIAGI, Fabio; ALEM, Ana; PINTO, Sol Garson Braule. Finanças públicas. Elsevier Brasil, 2017;

[2] SHOUP, Donald. The high cost of free parking: Updated edition. Routledge, 2017;

[3] VICKREY, William. The economizing of curb parking space. Traffic engineering, v. 25, n. 2, p. 62-67, 1954;

[4] IKEDA, Sanford. Urban interventionism and local knowledge. The review of Austrian economics, v. 17, n. 2-3, p. 247-264, 2004. 

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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