O Efeito Fisher e a Política Monetária

O ano de 2020 foi certamente um ano de excessos, muitos deles justificados. O Brasil gastou cerca de 12% do seu PIB com programas emergenciais; em comparação com os outros países latino-americanos que gastaram em média apenas 4% e o resto do mundo que gastou em média 6,3%. Essa quantidade enorme de dinheiro que foi direcionada para auxílio emergencial, programas de pagamento da folha salarial, etc, teve um bom efeito, pois graças a isso a economia brasileira encolheu 2% menos do que suas similares no mundo.

No campo monetário, o Banco Central ampliou seus estímulos ao setor bancário, incentivou a ampliação das carteiras de crédito e, sobretudo, adotou o Forward Guidance (FG). Nesse novo regime, o Banco Central deixaria de trabalhar com cenários alternativos de inflação e passaria a adotar apenas as estimativas de inflação básica. Dessa forma a autoridade monetária passaria a tolerar um pouco mais de inflação em curto prazo para a manutenção dos estímulos com o objetivo de impedir que a economia caia ainda mais por causa da pandemia. O Forward Guidance não objetiva afetar produto, mas apenas manter a estabilidade macroeconômica ( seguindo a linha de política do Banco Central desde a gestão Armínio Fraga).

Recentemente os efeitos desses excessos fiscal e monetário têm aparecido. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 2020 foi de 4.52%, contra 4.31% em 2019. Ambas as taxas superaram as metas de política monetária para seus respectivos anos. No último Relatório Focus (18/01/2021), o Banco Central elevou suas expectativas de inflação (IPCA) para 2021  de 3.37% para 3.43%. O IGP-M também apresentou alta considerável de 0.69% para 1.50%.

Mesmo com a inflação batendo a porta, o Banco Central manteve seu compromisso com o FG e manteve a taxa básica de juros (SELIC) em 2%. Muitos especulam que, dada a pressão inflacionária e o histórico de comprometimento da autoridade monetária brasileira com a estabilidade macroeconômica, o Banco Central voltará a ajustar a SELIC contra o IPCA. Outros dizem que a autoridade monetária irá realizar um ajuste gradual, com o objetivo de estabilizar expectativas e manter os estímulos para a economia real.

A grande questão do presente artigo é: deveria a autoridade monetária ajustar a taxa de juros de maneira rápida ou gradual?

Muitos podem opinar que seria desejável que o Banco Central ajustasse a SELIC de maneira gradual com o objetivo de manter os estímulos econômicos, porém em minha visão isso é por demais arriscado. As evidências sobre os custos e benefícios do Forward Guidance são ainda bastante escassas e só poderemos avaliar bem os resultados dessa política em longo prazo, por essa razão um tratamento empírico da questão é difícil. Contudo, a teoria monetária oferece algumas dicas do que virá pela frente. Em minha avaliação breve da questão, um ajustamento gradual dos juros poderia causar problemas econômicos por causa do chamado Efeito Fisher, nome dado em homenagem ao economista americano Irving Fisher (1867 – 1947).

Para entender o ponto de Fisher temos que entender dois conceitos essenciais: Equação de Trocas e Equilíbrio Monetário.

Digamos que vivamos em uma economia monetária; ou seja, onde as trocas são realizadas por intermédio de uma moeda. É trivial pressupor que nessa economia as pessoas gastem dinheiro para conseguir aquilo que desejam, seja o que for. Nessa economia uma pessoa qualquer gasta uma determinada quantia X de moeda para comprar um bem e o vendedor que recebe essa moeda gasta a mesma quantidade X em outros bens e assim por diante, até que a mesma quantidade X retorne à primeira pessoa. Assim, numa economia monetária podemos dizer que uma determinada quantia de moeda circula, passa de mão em mão até retornar a seu primeiro proprietário, dependendo da velocidade com que as pessoas gastam seu dinheiro. Logo, a quantia gasta em uma economia pode ser dada por um produto da quantidade de moeda nela presente (M) pela velocidade das transações (V).

Toda transação envolve algum bem ou serviço e seu respectivo preço. Assim, toda quantia gasta em uma economia é igual ao total de bens e serviços, ou produto real (Y), multiplicado por seu respectivo preço (P). Dessa forma, pela quantia gasta, temos um equivalência lógica entre as partes, onde:

                                                              MV = PY

Essa é a fórmula da equação de trocas de Fisher. É interessante notar, para fins de análise, que Fisher considerava que M poderia ser dividido em dois tipos: moeda propriamente dita e moeda bancária (crédito). Assim, o agregado monetário M da equação de Fisher também incluía a moeda gerada pelo sistema de reserva fracionada dos bancos.

Já o equilíbrio monetário pressupõe que todo aumento de moeda na economia se traduzirá somente em um aumento de preços. Para chegar a isso devemos supor que a velocidade e o produto de uma economia sejam constantes. Portanto, um aumento da quantidade de moeda em uma economia não produzirá mudanças na velocidade com que as pessoas gastam a moeda em seu poder e nem no produto total dessa economia. Em economia chamamos isso de neutralidade da moeda. Para os fins de seu modelo, Fisher considerou que a neutralidade da moeda seria somente de longo prazo. Ou seja, uma variação da quantidade de moeda em uma economia poderia produzir variações de produto em curto prazo, porém o aumento da produção tenderia a se adaptar em longo prazo à nova quantidade monetária gerando um novo equilíbrio.

Com isso em mente, agora podemos entender melhor o chamado Efeito Fisher. Fisher criou essa teoria para poder explicar o que ele via como os efeitos distorcivos do processo de ajustamento da taxa de juros real. Imagine uma economia em que os preços sejam perfeitamente estáveis (inflação 0%) e onde a taxa de juros nominal do mercado seja de 4%. Por consequência, a taxa de juros real também será de 4%.

Contudo, devido a um aumento da quantidade de moeda na economia, agora temos uma elevação do nível de preços anual de 3%. Agora, a taxa de juros nominal continua a ser de 4%, porém a taxa real passa a ser de 0.97%. Assim, devido a inflação, as pessoas que aplicam nesses juros terão perdido 3.03% em oportunidade devido a inflação. Para que essa perda seja compensada é necessário que a taxa de juros nominal incorpore a inflação e vá para um novo patamar de 7.9%, por exemplo. Porém, existe diferença se esse ajuste da taxa de juros nominal é feito imediatamente ou gradualmente; se elevando para 5% em um período e 6% em outro antes de atingir 7.9%.

A razão disso deriva da análise da equação de trocas com neutralidade de longo prazo. Pela equação, essa nova quantidade de moeda dentro da economia fará os preços subirem. Em curto prazo, isso será ótimo para os empresários. Suas dívidas em termos reais são deterioradas ao mesmo tempo que eles elevam seus faturamentos nominais, de forma que seus lucros reais crescem durante a inflação.

Vendo um aumento de seus lucros, os empresários se sentem incentivados a ampliar seus negócios; com compra de máquinas, aumento de produção, contratação, etc. Com isso, eles se sentem encorajados a tomar mais empréstimos dos bancos para tanto. Com isso, os bancos aumentam suas carteiras de crédito e criam mais moeda bancária; elevando ainda mais o agregado M e, por consequência, os preços.

Com isso o produto da economia se expande em curto prazo, mas de maneira bastante distorciva. Os empresários aumentam seus lucros, porém os trabalhadores e credores têm perdas em termos reais em seus juros e salários. Mesmo incentivando o aumento da produção em curto prazo, essa expansão inflacionária de moeda mantém todos os outros componentes da oferta constantes ( a moeda não afeta a produtividade dos fatores e nem a disponibilidade de novas tecnologias e trabalhadores). A expansão monetária afeta quase que exclusivamente os preços e a velocidade de transações.

Todavia, tal cenário distorcivo só poderá se manter na medida em que o juros nominal não incorpore a taxa de inflação. A partir do momento que o juros nominal se ajusta não existe mais interesse na contratação de empréstimos, pois não existe mais lucros reais anormais. Com a contração dos empréstimos, os bancos deixam de emitir moeda bancária e M se contrai reduzindo os preços. Nesse momento, os empresários que contavam com a renovação de seus empréstimos a taxas depreciadas tomam um banho de água fria e se encontram com dívidas maiores do que sua capacidade de pagamento original. As empresas não conseguem pagar e vão a falência, dando calote em seus credores e demitindo funcionários. Com o aumento do desemprego e da inadimplência diminui a quantidade de moeda em circulação e a velocidade, uma vez que trabalhadores e bancos ficarão com medo de abrir mão de sua moeda presente. Inicia-se uma crise que, por redução de produto e agregado monetário, irá fazer a economia voltar a seu equilíbrio original em longo prazo.

A lição de Fisher nesse caso hipotético é bem clara: não ajuste juros de maneira gradual, realize um ajuste imediato.

Contudo, alguns pontos devem ser notados. Primeiramente, Fisher trabalhava em um cenário sem rigidez de preços, diferentemente do modelo keynesiano que lhe sucedeu. Diferentemente do que analisava Keynes, Fisher não via como os trabalhadores poderiam tornar os salários difíceis de ajustar por causa do poder dos sindicatos. Adicionando esse e alguns outros fatores ( como os diferentes tipos de demanda por moeda) poderíamos discordar de Fisher que em longo prazo a crise tenderia a um novo equilíbrio monetário. Em longo prazo talvez realmente estivéssemos mortos.

Segundo, o modelo de Fisher sofre de uma deficiência dos primeiros modelos neoclássicos que é considerar os agentes econômicos idiotas. No exemplo que apresentei os agentes aceitam passivamente os incentivos que recebem e não reagem formulando “especulações” sobre o que ocorrerá no futuro caso aquele incentivo se mantenha para si e os outros agentes; ele não forma cenários. Entretanto, adicionar que os agentes econômicos podem formular expectativas racionais sobre o que ocorrerá em seguida leva a conclusões interessantes para uma política monetária, pois se os agentes esperam que isso ocorra ele já vão precificar a defasagem dos juros em momento presente. Ou seja, realizar um ajuste gradual esperando que os agentes mantenham seus gastos e investimentos correntes por um prazo maior é uma total bobagem, pois eles já esperam que em longo prazo ocorra algum desastre.

Por fim deve ser notado que o modelo de Fisher é puramente teórico. Ele obviamente simplifica uma série de fatores e não representa perfeitamente o funcionamento de uma complexa economia de mercado moderna. Contudo, ele nos oferece uma lente analítica interessante para analisarmos fenômenos mais complexos derivados dessa dinâmica simples. É interessante notar, por exemplo, que essa lógica do ajustamento da taxa nominal de juro à  inflação está na base das metas de inflação adotadas pelo nosso Banco Central com a Regra de Taylor e das políticas monetaristas de ajuste dos agregados monetários. É interessante notar também que o modelo de Fisher não se restringe a inflação, mas fala mais sobre os efeitos de má alocação causados pela taxa de juros.

O que foi posto até aqui é um exemplo meramente teórico que deve ser ponderado pela evidências que surgirem no mundo real. Ele é uma lente analítica útil, mas é bom observarmos como os movimentos da realidade irão afetar nosso cenário.

Referências

– SENNA, José Júlio. Política Monetária: ideias, experiências e evolução. Editora FGV, 2010;

– CYSNE, Rubens Penha; SIMONSEN, Mario Henrique. Macroeconomia. Rio de Janeiro: Atlas, 4ª Edição, 2009.

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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