Nobel 1979: Theodore Schultz e Sir Arthur Lewis | por Karina Bugarin

Entre os Prêmios Nobel, os pais do desenvolvimento econômico

Dou início a este breve relato sobre os trabalhos acadêmicos de Sir Arthur Lewis e Theodore W. Schultz utilizando uma frase de George Orwell: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”, de seu livro A Revolução dos Bichos. Theodore Schultz e Sir Arthur Lewis demonstraram em suas vidas, tanto acadêmicas quanto profissionais, uma profunda inquietação com o porquê de “alguns animais (serem) mais iguais que os outros”. 

Em um contexto irrefutavelmente marcado pela heterogeneidade da recuperação econômica dos países pós-Segunda Guerra Mundial, os autores buscaram identificar fatores que impulsionavam ou limitavam o crescimento econômico, não apenas sobre uma ótica de fatores tradicionais de produção. Vale ressaltar que o contexto dos anos 50 (“Golden Age of Capitalism”) trouxe desafios pungentes: hiato crescente entre economias industrializadas (tidas como modernas) e economias em desenvolvimento (tidas como periféricas), expansão populacional e menor disponibilidade de alimentos em países em desenvolvimento, difundida pobreza, entre outros. 

Com suas experiências práticas e empíricas, os autores exploram, à luz da teoria econômica clássica, fatores mais sutis do crescimento econômico, fundamentando o que posteriormente viríamos chamar de Desenvolvimento Econômico. Theodore Schultz, filho de fazendeiros, desenvolve o que chamamos hoje de investimento em capital humano para alavancar o crescimento econômico. Sir Arthur Lewis, negro e nascido em colônia britânica, aponta para a rigidez e constância da pobreza em países em desenvolvimento como resultado de baixa produtividade. A união de suas ideias e modelos teóricos induziu um refinamento da teoria de crescimento econômico, considerando elementos institucionais, históricos e de formação de capital humano.

Os aportes de Lewis e Schultz, da década de 50, servem para o Brasil de 2020. Com produtividade estancada há mais de três décadas, pressões crescentes no aumento de desigualdade de oportunidades no acesso aos serviços básicos de qualidade (educação, saúde e segurança pública), situação agravada pelo retrocesso em uma década de produção e emprego ocasionados pela pandemia do COVID-19, parece que ainda não conseguimos internalizar a importância de capital humano e os efeitos limitantes da pobreza em nossas políticas públicas. A frase do humorista Millôr Fernandes parece carregar os ensinamentos de Schultz e Lewis e nossa incapacidade de internalizá-los: “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. 

Theodore Schultz

Nascido em South Dakota (EUA) em 1902, durante a presidência de Theodore Roosevelt, cresceu num estado onde a atividade agrícola era o principal setor produtivo no início do século XX. Com uma trajetória profundamente marcada pela empatia aos fazendeiros, iniciou sua carreira em economia observando os efeitos deletérios da insolvência sobre os fazendeiros e iniciando a discussão do rol do capital humano na atividade produtiva.

Sua mente, inquieta e curiosa, não foi posta a poucos desafios. Com o choque da Primeira Guerra Mundial, Schultz foi obrigado a suspender seu ensino formal. Retomando os estudos a partir de 1919, com a conclusão do conflito, ele passou rapidamente por Iowa State University, onde fez um curso de extensão (“minor degree”) em Agricultura. O modelo heterodoxo da Universidade de Wisconsin à época instigou Schultz a perseguir sua graduação e seu doutorado em Economia. A conclusão de seu doutorado em 1930 coincide com o período da grande depressão nos EUA e retorna à sua alma mater, Iowa State University, agora como professor. Em 1943, após 13 anos nessa instituição, Schultz assume posição docente na Universidade de Chicago, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1972.  

No momento de auge das teorias keynesianas, voltadas a efeitos de curto prazo da expansão de gastos públicos diretos sobre o nível de atividade econômica, em particular sobre o desemprego, Schultz aprofundou sua análise sobre a necessidade de focalizar a análise econômica no campo das políticas públicas. Após a Segunda Guerra Mundial, a heterogeneidade nas trajetórias de retomada de crescimento econômico entre países instiga Schultz a investigar o porquê da recuperação da alemã-japonesa ser tão diferente da inglesa. A conclusão, com uma análise institucional e histórica alinhada com a estritamente econômica clássica, indicou que o ponto crítico para a reação econômica à crise vinha do capital humano: escolaridade, nutrição, competências. 

Empirista, curioso sobre abordagens econômicas desde que atreladas a uma possível melhoria de bem-estar social, Schultz não formalizou um modelo de crescimento econômico. Ao invés disso, dedicou-se a desagregar a produtividade total dos fatores a partir de constatações factuais para fundamentar como se promove o acúmulo de capital humano para alavancar produtividade e promover ganhos (inclusive aos mais pobres) em produção agregada. 

Com a contribuição de Solow em 1957 sobre mudanças tecnológicas e a função de produção agregada, Schultz questiona a hipótese de retornos crescentes a escala. Salienta que se apenas metade do crescimento de produção nacional pode ser explicado por horas trabalhadas e capital físico, a causa para o crescimento parecia estar no que chamaram de “resíduo” e na qualidade dos recursos produtivos. Com retornos constantes de escala, mantendo constante a taxa marginal de substituição entre capital e trabalho, o aumento da produção agregada deve refletir um investimento desse produto na forma de insumo de produção ou melhoria da qualidade dos fatores produtivos capital físico e trabalho. Assim, o aumento de produção agregada seria um reflexo do aumento da qualidade dos recursos produtivos.  

Seu argumento segue a lógica de investimento. A alocação de recursos de produção para aprimorar a qualidade dos insumos pode ser caracterizada como investimento. Schultz, então, indaga como se mensura os efeitos de escolaridade e saúde e seu impacto nos retornos sobre investimento. Esta sequência temporal simplifica o processo de inserção de investimento em capital humano como fator determinante de crescimento econômico. Vale destacar que desde o início de sua carreira, Schultz remete a características dos indivíduos na produção agrícola e a importância de pesquisa para alavancar o retorno sobre investimento, tanto em termos de capital humano quanto em inovação do meio de produção. 

O papel do governo é discutido ao longo de toda sua produção acadêmica. Iniciando com visão fortemente intervencionista no seu período como docente em Iowa State University (nos anos 30 e início de 40), as situações contextuais históricas e de vivência, Schultz redireciona seu escopo ideológico para a vertente de liberalismo clássico, chamando atenção às distorções geradas pelas intervenções dos governos. Em 1941, após o escandaloso episódio “Oleomargarine” [1], Schultz sai e assume posição executiva em um grupo (do qual Milton Friedman também era membro) para promover discussões acadêmicas sobre a maximização da liberdade individual em uma sociedade moderna, concomitantemente assumindo posição de docente na Universidade de Chicago. 

Schultz encontra evidências de que o excesso de intervencionismo estatal prejudica e potencializa a pobreza rural em países periféricos (subdesenvolvidos ou pobres), observando como os governos obstruíam incentivos de mercado e avanços tecnológicos, muitas vezes estabelecendo preços artificiais e sobretaxando os produtores rurais. Schultz entende que a atividade empreendedora de fazendeiros em perceber, interpretar e responder às novas oportunidades não poderia ser realizada pelo governo, sendo o último a principal causa de incentivos econômicos não ótimos.

As extensões temáticas na Economia dos trabalhos de Schultz são evidentes: economia da educação e da saúde; teoria da decisão (deriva do entendimento de que todo agente econômico age racionalmente, respondendo a incentivos, mesmo que sem escolaridade); pobreza e capital humano; entre outros. O cerne da linha de argumentação de Schultz está na necessidade de investimento em educação e saúde para aumentar a produtividade, reduzindo consequentemente a pobreza, com pouca ou nenhuma intervenção governamental no processo produtivo em si. 

Schultz viveu quase integralmente o século XX, tendo falecido em 1998, aos 95 anos de idade em Evanston, Illinois. Continuou ativo academicamente até 1990 quando, por motivos de saúde, parou sua diligência acadêmica.

Sir Arthur Lewis

Nascido em 1915 na ilha de Santa Lucia no Caribe, Sir Arthur Lewis marcou sua presença na formação de teoria econômica pela elegância na formalização de seu modelo e a aderência à realidade dos países em desenvolvimento, particularmente nas colônias britânicas. Também notório por ser o primeiro aluno e, posteriormente, professor negro na London School of Economics (LSE) e em Princeton, o primeiro negro a ter posto nas Nações Unidas, primeiro Nobel negro em Economia, entre outras posições de destaque internacional. Lewis formalizou porque pessoas permanecem pobres mesmo na presença de crescimento econômico. Pode-se dizer que abriu o caminho para a discussão de poverty traps.

Em sua vida, consistentemente manteve um nível de destaque. Recebeu bolsa para cursar o ensino fundamental em Saint Mary’s College (Santa Lucia), sendo aprovado no Cambridge Junior Exam aos 12 anos, e recebendo o Cambridge School Certificate com honra ao mérito, completando seus estudos aos 14 anos. Em 1933, foi aceito no programa de graduação em comércio (Bachelor in Commerce Degree) na LSE, sendo concedida a única bolsa de estudos para o conjunto das colônias britânicas. Em 1937, conclui a graduação aos 22 anos com a maior nota geral da história da LSE. Em 1940, finalizou seu doutorado em Economia Industrial pela LSE. Foi o primeiro professor negro da LSE com contrato de apenas um ano, não permitindo orientação de alunos. Em 1948, quando tinha apenas 33 anos, foi lecionar em Manchester. No fim da década seguinte, Lewis assumiu como chefe do Departamento de Economia na Universidade das Índias Ocidentais. Já em 1963, ele virou professor em Princeton (tendo apenas um breve interregno de três anos que começou em 1971). 

Fora da academia, foi diretor da Cooperação de Desenvolvimento Colonial, Presidente do Banco de Desenvolvimento do Caribe, Diretor do Banco Central da Jamaica e membro de diversos conselhos (Conselho Econômico Consultivo das Colônias, Política Nacional de Combustíveis na Inglaterra, Grupo de Especialistas da ONU, entre outros). 

A principal pergunta que motivava Lewis era “por que crescimento econômico não impede que as pessoas sejam pobres automaticamente?”. Estendendo modelos neoclássicos de crescimento, Lewis publica em 1954 o seu artigo seminal “Economic Development with Unlimited Supplies of Labour”. O seu modelo inicia com uma abstração genial pela simplicidade: iniciando em uma economia fechada com dois setores (A;B), sendo A agricultura e B indústria. Em economias periféricas (“backward economies”, conforme denominado por Lewis), existe excesso de oferta de trabalho em A, onde a produtividade marginal do trabalho é irrisória (zero ou até mesmo negativa). Sendo assim, o setor B absorve a mão-de-obra com salários de subsistência do setor A. 

A formação de capital e o avanço tecnológico aumentam o lucro relativo à renda nacional, mas não necessariamente induzem um aumento salarial. O setor capitalista (B ou industrial) expande à medida que formação de capital ocorre (por crédito e lucro), absorvendo mão-de-obra do setor agrícola (A) até que o excesso de mão-de-obra disponível seja absorvido integralmente. Neste momento, salários começam a crescer acima do nível de subsistência. 

A importação de capital externo apenas se traduz em crescimento de salário real na medida em que a produtividade do trabalho cresce. Por isso, Lewis destaca a ineficiência de produção agrícola em países periféricos faz com que suas commodities sejam relativamente baratas e os salários de subsistência. Naturalmente, o crescimento econômico não seria traduzido em redução de pobreza (não haveria aumento salarial e a taxa marginal de produtividade de trabalhadores do setor A, mesmo migrando a B, se manteria irrisória).  

O principal mecanismo pela qual o crescimento econômico leva ao aumento dos salários reais, reduzindo assim o estado de subsistência da maioria da população em países periféricos, é um aumento de produtividade. A permanência de uma economia em um estado de subdesenvolvimento, inadequadamente denominado de “poverty trap”, no contexto Lewisiano, deriva da baixa produtividade acoplada a um excesso de mão-de-obra do setor A (agrícola) menos desenvolvido.

As extensões do modelo bissetorial de Lewis ao longo da teoria econômica são diversas e evidentes: adição de custos de transição de mão-de-obra (seja entre setores, seja entre países); identificação de conjunto de competências diferentes entre setores que condicionam a possibilidade de fluxo setorial da mão-de-obra; restrição no consumo dos bens produzidos no curto prazo; reinvestimento parcial do lucro para a expansão da produção; impacto do fluxo de mão-de-obra na presença de choques tecnológicos; entre outros.

Lewis faleceria aos 76, apenas doze anos depois de conquistar o Nobel de Economia. Foi enterrado em Saint Lucian Community College em sua terra natal, onde sua memória puja no novo nome da faculdade: Sir Arthur Lewis Community College.  

Uma reflexão para o Brasil

Os autores convergem na importância de produtividade como principal elemento de propulsão do crescimento econômico com ganhos sociais. Os autores coerentemente mostraram que não era necessário um novo modelo para analisar os países periféricos, algo que à época ressoava nos ambientes acadêmicos. Bastaria utilizar o modelo neoclássico com destaque a elementos históricos e institucionais para compreender a heterogeneidade da retomada do crescimento econômico e o persistente retardamento de economias periféricas.

No caso de Schultz, produtividade derivava de investimento em saúde e educação. A produtividade seria responsável pela maior qualidade dos fatores de produção agregada e reduz a pobreza. Para Lewis, produtividade garantia o aumento dos salários dos trabalhadores como consequência do aumento do capital. Ambos entendem a produtividade como chave para o Desenvolvimento Econômico. Uma rápida análise do Brasil nos permite voltar as frases de Orwell e Millôr apresentadas no início desta exposição. Com a produtividade do trabalho estancada, a busca por um desenvolvimento econômico parece um exercício de narrativas bonitas sem efeitos reais. 

A crescente importância dada ao ensino técnico, inclusive com a inclusão da modalidade no novo currículo do Ensino Médio, sinaliza que queremos impulsionar nosso capital humano. A crescente preocupação com tudo 4.0, da agricultura à indústria, sinaliza que queremos aumentar a produtividade por trabalhador. Mas a evidente desconexão do mundo das boas intenções traduzidas em políticas públicas com o dia a dia e as necessidades dos cidadãos limitam a efetividade da atuação do setor público no Brasil. 

Produtividade já se apresentava como ponto crítico para o desenvolvimento econômico, resultando em dois Nobel de Economia no final da década de 70. Espero que o reviver das vidas e das teorias dos grandes mestres possa iluminar a criticidade do debate.  É preciso, tão logo este dramático período sanitário seja superado, soluções integradas adotadas para alavancar a produtividade do país. 

Karina Bugarin

Graduada INSPER e mestrado Univ. Tsukuba (Japão).

Notas

[1] Iowa State publica um relatório que defende a suspensão das restrições na fabricação e venda de margarina, que seria um bom substituto para manteiga (tanto em gosto quanto em valor nutricional). O relatório enfrenta uma série de repercussões políticas liderada pelo lobby dos produtores de laticínios. A administração de Iowa State tentou impedir a impressão de folhetos com os resultados da pesquisa, e o reitor careceu de apoio a Schultz. O episódio culmina no pedido de demissão de Schultz e sua ida para Chicago University.

 

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