Nobel 1991: Ronald H. Coase | por Claudio D. Shikida

Ronald H. Coase e algumas dicas para seu pequeno negócio de entrega de marmitas

Ronald Harry Coase, mais conhecido como Ronald H. Coase, recebeu o Prêmio Nobel em Economia no ano de 1991 [1]. Para os que não conhecem bem a história de Coase, pode parecer curioso que o economista britânico lecionasse na University of Chicago Law School, e não no departamento de economia da famosa universidade. Afinal, ainda é uma prática – nunca explicitamente dita, mas frequentemente utilizada – nas instituições de ensino superior (IES) alocar professores supostamente menos importantes em disciplinas de Economia em outros departamentos [2].

O comitê do Prêmio justificou o Nobel para Coase com as seguintes palavras: “(…) for his discovery and clarification of the significance of transaction costs and property rights for the institutional structure and functioning of the economy” [3]. Em bom português, Coase mereceu o prêmio por sua descoberta e explicação acerca da importância dos custos de transação e dos direitos de propriedade para a estrutura institucional e o funcionamento da economia.

Os termos sublinhados no parágrafo anterior merecem destaque. São conceitos importantes e não meras palavras soltas. Tentarei explicá-los com um único exemplo supondo que o leitor queira complementar sua renda (durante a pandemia?) com um novo – e extraordinário (dirá seu anúncio) – negócio de entrega de marmitas.

Vejamos o primeiro conceito, os custos de transação. Ao pensar em complementar sua renda vendendo marmitas na pandemia, você precisa estimar seu custo-benefício. Um custo importante é o custo de produção. Que insumos serão necessários para que você produza marmitas? Um fogão adicional? Um ajudante? Custos de transporte também são importantes. Um automóvel? Uma motocicleta? Ou você contratará um motorista? Entretanto, esta operação toda necessita ser contratada. Há o contrato de abertura do restaurante (a burocracia para isto pode levar dias, não?), o contrato do auxiliar de cozinha e, claro, o contrato do motorista de aplicativo de celular (e, portanto, a escolha do aplicativo, já que os custos podem variar). Estes são os custos de se organizar a transação. Em um país pouco burocrático, eles podem ser desprezíveis, mas o leitor provavelmente nasceu e mora no Brasil. 

Parece óbvio, mas não era na época em que Coase explicou o conceito para Milton Friedman, em um famoso jantar na casa de Aaron Director [4]. Pergunte-se sobre o quanto vale, para você, abrir seu negócio se o tempo empregado para obter permissões da prefeitura, do governo estadual, do governo federal, assinar documentos exigidos na contratação do ajudante de cozinha, etc. Conforme for, inclusive, pode ser que você mesmo cozinhe tudo e entregue as marmitas, não é? Este é o insight central do conceito de custos de transação que está em seu, hoje clássico, The Nature of Firm [5].

Outro conceito importante é o que chamamos de direitos de propriedade e o que os amigos do Direito chamam de direitos subjetivos [6]. Já que falamos de um restaurante familiar, vejamos o que isso significa. Você começou a cozinhar em casa e a atender mais telefonemas do que antes. Suponha que você more em uma casa pequena e há apenas um vizinho próximo (pode-se pensar naquelas casas geminadas). Bem, você começa a fazer muito barulho com seu – agora próspero [7] – negócio. 

Seu vizinho acha que você o incomoda muito. Como você, ele não tem ainda dinheiro suficiente para comprar o imóvel e alugou a casa ao lado, achando que você não seria um vizinho barulhento. Você pode não saber, mas ele escreve para um blog de Economia e precisa de um certo silêncio para se concentrar [8]. Temos aí um problema potencialmente perigoso [9].

A questão é que o problema não é você – como você pensa – e nem ele – como ele pensa – mas sim um problema conjunto. Você precisa cozinhar e entregar suas marmitas e ele precisa escrever seus textos. Ocorre que vocês moram muito próximos um do outro. Qual a solução?

Caso não existam custos de transação, vocês podem transacionar o direito de propriedade ao barulho. Parece complicado, mas não é. Pessoas fazem isto o tempo todo em suas vidas. São apenas duas pessoas (logo, o custo de transação é muito baixo, para não dizer nulo) e é possível que negociem o direito de propriedade sobre o barulho entre si (como a transação é voluntária, em caso de sucesso, ambos ficam felizes, certo?). 

Assim, pode acontecer de você pagar ao vizinho uma quantia tal que ele possa se mudar ou o contrário. Para que tudo isso funcione, claro, é preciso que o direito de propriedade ao barulho possa ser negociado, ou seja, que ele esteja bem definido. A solução privada, da negociação, emerge sem a necessidade de intervenção governamental. Basicamente, é este o Teorema de Coase.

O barulho é a famosa externalidade e as soluções pré-Coase envolviam sempre a intervenção do governo. Na verdade, se custos de transação não forem desprezíveis, podemos imaginar um feixe de soluções que vão das soluções privadas à governamental. Caso tivéssemos um condomínio de casas, talvez o comitê do condomínio tivesse de interferir na discussão. Caso fossem vários restaurantes e vários escritores, provavelmente o prefeito e os vereadores tivessem que intervir [10].

Aliás, quanto mais escasso se torna um recurso, maior a demanda das pessoas pelo estabelecimento formal dos direitos de propriedade sobre o mesmo e esta é outra forma de se exemplificar a relação entre custos de transação e direitos de propriedade. A colonização de um novo terreno, com baixa densidade populacional, faz com que, inicialmente, as soluções privadas prevaleçam e os direitos de propriedade sejam informalmente respeitados. 

Contudo, o aumento da população sobre o mesmo terreno aumenta os custos de transação e o respeito informal aos direitos de propriedade passam a exigir maior formalização dos mesmos. Passa-se do respeito à tradição para o respeito ao xerife e deste para o respeito das leis escritas e assim por diante. É assim que chegamos ao último conceito citado acima, o de instituições. Aqui, Coase, curiosamente, antecipa o Nobel que Douglass C. North receberia dois anos depois, em 1993, já que a definição mais comum de instituições é aquela devida a ele (North). Em outras palavras, instituições são as regras do jogo desenhadas pelos indivíduos para estruturar as interações políticas, econômicas e sociais [11]. Não é difícil perceber que a discussão das instituições está ligada à discussão da diversidade de arranjos de direitos de propriedade cuja introdução na Ciência Econômica é, em grande parte, mérito de Coase.

Por fim, embora não tenha citado acima, existe uma outra contribuição de Coase, interessante, que é a conjectura de Coase. O problema aparece em alguns livros de Organização Industrial [12], e é uma interessante decisão microeconômica a ser tomada por um monopolista que, ao invés de um bem não-durável (hipótese básica, geralmente implícita, durante a maior parte dos cursos de microeconomia básicos), tem um bem durável. Já que falamos de restaurante, que tal pensarmos que você ampliou seu negócio e agora comprou umas chopeiras?

Suponha também que, na sua região de atendimento, apenas você tem as chopeiras. O interessante é que a maximização passa a ser intertemporal e envolve a comparação de duas estratégias: alugar as chopeiras ou vendê-las. O problema faz sentido, já que consumidores sabem que, se você vender parte de suas chopeiras hoje, terá menos para vender depois já que são bens duráveis e consumidores não compram chopeiras como compram bananas. Como bem coloca Bryan (2013), o monopolista com bens duráveis tem um problema: ele não consegue ganhar a renda de monopólio com a venda do bem [13]

O leitor que chegou até aqui deve ter notado que Coase fez contribuições sensacionais no que convencionou-se chamar de Microeconomia. É sempre dito, com razão, que ampliou nosso entendimento sobre a teoria da firma, sobre externalidades. Terá contribuído para seu negócio de marmitas? Arrisco a dizer que sim [14].

Claudio D. Shikida

Claudio D. Shikida (Claudio Shikida) é doutor em Economia pelo PPGE-UFRGS. Pesquisador do PPGOM-UFPel e, atualmente, Coordenador-Geral de Pesquisa na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), em Brasília. Ele agradece o convite para colaborar com esta série de textos e deixa claro aos que queiram saber mais sobre ele que, por sua conta e risco, consultem: http://cdshikida.net http://wp.ufpel.edu.br/cdshikida

Notas 

[1] Coase morreu em 2013, com 101 anos. Talvez o mais longevo Nobel de Economia.

[2] É, até certo ponto, curioso que nunca tenha sido publicado um artigo analisando o custo-benefício deste tipo de prática. Afinal, se aqueles que possuem maior inclinação para o raciocínio econômico optam pelo curso de Ciências Econômicas, o ganho marginal de se aprender princípios básicos de Economia seria maior justamente em disciplinas fora do curso. A alocação de professores geralmente é decidida por um diretor auxiliado (ou não) por um corpo diretivo (o “colegiado”), o que nos remete a problemas de ação coletiva, para dizer o mínimo. Talvez algum dia, alguém analise as atas das reuniões de departamentos de economia no Brasil e publique um artigo interessantes sobre as decisões tomadas nos departamentos de economia, as restrições institucionais que são realmente binding nestes casos, os problemas de ação coletiva envolvidos, etc. 

[3] Ver: https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/1991/press-release/.

[4] A história é contada, por exemplo, aqui: https://www.econlib.org/library/Enc/bios/Coase.html

[5] Coase, Ronald H. The Nature of the Firm Economica 4, November, 1937, p.386-405.

[6] A explicação está no ótimo trabalho de Ivo Gico Jr e a confusão conceitual tem sido uma barreira ao diálogo interdisciplinar entre as duas áreas, a despeito dos esforços de muitos estudiosos do tema no Brasil (reunidos, em grande parte, na Associação Brasileira de Direito e Economia, ABDE). Ver Gico Jr, Ivo. A Tragédia do Judiciário: subinvestimento em capital jurídico e sobreutilização do Judiciário. Tese de Doutorado, PPG-ECO, UnB, 2012. (http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/13529/1/2012_IvoTeixeiraGicoJunior.pdf).

[7] Estou torcendo por você!

[8] Suponhamos que seu vizinho até encomende suas marmitas de vez em quando. Assim podemos supor que ele também torce por você, mas está incomodado com o barulho.

[9] A violência pode aumentar durante a pandemia? Aguardemos os estudos. Enquanto isto, mais do que nunca, keep calm and study Economics.

[10] A discussão de Coase sobre as externalidades está em Coase, R.H. (1960) The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, v.3, n.1, p.1-44.

[11] Ver North (1991). Institutions. Journal of Economic Perspectives, v.5, n.1, Winter 1991, p.97-112.

[12] Por exemplo: Shy (1995) [Shy, O. (1995). Industrial Organization. MIT Press] e Tirole (1988) [Tirole, J. (1988). Industrial Organization. MIT Press]. Deixando de lado a modéstia, a nota didática de Shikida (2018) expõe, com um exemplo numérico, o problema. Ver Shikida (2018) O que Picasso e chopeiras têm em comum? – A Conjectura de Coase (versão revisada) https://gustibuseconomia.com/2020/06/11/uma-nota-de-aula-antiga-revisada-coase-picasso-e-o-chopp/

[13] Seu breve texto está aqui: https://voxeu.org/article/economic-ideas-ronald-coase.

[14] Obviamente, meu texto não é tão claro e didático quanto os artigos de Coase. Desnecessário dizer que recomendo fortemente a leitura dos mesmos. Há também o ótimo: Coase (1995) [Coase, R.H. Essays on Economics and Economists. University of Chicago Press, 1995.

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