Nobel 1993: Robert Fogel | por Thales Zamberlan Pereira

Robert Fogel ganhou o Nobel de 1993, em conjunto com Douglass North, por ter “renovado a pesquisa em história econômica aplicando teoria econômica e métodos quantitativos para explicar mudanças econômicas e institucionais.” Fogel e North trilharam um caminho comum em sentidos opostos no desenvolvimento da “nova história econômica”, posteriormente conhecida como cliometria. North usou o passado para entender o presente. A economia institucional foi uma proposta para entender dinâmicas de longo prazo, a prosperidade das nações. Fogel fez o caminho inverso, usou a teoria econômica do presente para reinterpretar o passado. Assim como outros economistas de Chicago durante as décadas de 1960 e 1970, Fogel buscou utilizar a teoria microeconômica como uma teoria social, aplicando conceitos como o de racionalidade a uma série de problemas fora do seu escopo tradicional, como o estudo da escravidão.

Fogel não foi o criador da nova história econômica, mas foi provavelmente seu maior divulgador. Conhecido por apresentar resultados de uma forma provocativa, era um mestre em gerar controvérsias que davam visibilidade ao seu trabalho. Em 1983, publicou Which Road to the Past? Two Views of History com o historiador Geoffrey Elton e nomeou o seu capítulo, de forma não sútil, de “história ‘científica’ e história tradicional”. A mensagem do livro era conciliatória – estabelecer a coexistência de formas distintas de se estudar história – mas ao longo de sua carreira Fogel sempre advogou uma visão específica do que deveria ser considerado “boa” história econômica.[i] Parte dessa visão veio de Simon Kuznets, orientador de Fogel no doutorado. Kuznets, na primeira edição do Journal of Economic History, em 1941, escreveu que existiam diversos indícios que historiadores econômicos estavam se “conscientizando da necessidade de maior ênfase no uso de dados estatísticos e de análises estatísticas”. Essa tendência se consolidou na década de 1950, com os estudos sobre escravidão de Alfred Conrad e John Meyer, que também defenderam o uso de teoria econômica e inferência estatística em história econômica. A necessidade do uso da teoria, segundo eles, decorria do fato que a única forma de estabelecer causalidade em estudos históricos era a utilização explícita de hipóteses teóricas.[ii] Afinal, historiadores não se preocupam apenas em coletar fatos ou declarações sobre o passado, mas sim encontrar relações causais entre eventos.

O uso da teoria econômica neoclássica como ferramenta para interpretar o passado rapidamente gerou uma série de controvérsias, especialmente entre historiadores. Estes tacharam a metodologia da nova história econômica como “antiempirista” e “antipositivista”, porque consideravam modelos teóricos inverificáveis na prática.[iii] O foco dessas críticas era o uso de contrafactuais (“e se determinado evento não tivesse ocorrido?”), tidos como especulações intrusivas e fictícias dentro de uma disciplina empírica. Os defensores da nova história econômica, no entanto, argumentavam que posicionamentos contrafactuais eram de uso frequente por parte da historiografia tradicional. Segundo Fogel, os historiadores, ao fazerem julgamentos sobre supostos erros históricos (exemplo: Napoleão errou ao invadir a Rússia), assumiam uma posição de conhecimento sobre o “curso dos eventos em situações que nunca ocorreram”.[iv] Logo, afirmações históricas sobre processos que envolvem mudanças também assumiriam uma posição contrafactual, mesmo que de forma implícita.[v] Ao defender a inevitabilidade do uso de histórias alternativas, o que era relevante para Fogel nesse debate era como estabelecer critérios para determinar se os argumentos utilizados para os contrafactuais eram válidos ou, pelo menos, razoáveis. A teoria, portanto, seria necessária para disciplinar as possibilidades introduzidas pelo uso de contrafactuais.

O primeiro trabalho de Fogel utilizando contrafactuais questionou a interpretação historiográfica tradicional sobre o impacto das ferrovias no crescimento econômico dos Estados Unidos. Fruto da sua tese de doutorado, o livro Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History (1964) contestou a visão de que as ferrovias foram importantes para o crescimento dos Estados Unidos durante o século 19. Fogel analisou como seria a utilização de canais e rodovias na ausência do sistema ferroviário e estimou que o produto nacional bruto (PNB) dos Estados Unidos seria “apenas” 5% inferior ao observado em 1890. Esse resultado indicava que não existiam setores que, sozinhos, fossem responsáveis pela maior parte do desenvolvimento econômico dos países, o que era bastante controverso na época. O alvo de Fogel eram análises como o modelo de “decolagem” (take-off) de Walt Rostow, que caracterizava o desenvolvimento econômico como um processo descontínuo, fruto de grandes investimentos em novas tecnologias que possibilitariam as economias alcançarem novos estágios de desenvolvimento.

A reação ao resultado que “ferrovias não importavam” foi imediata. Assim como aconteceria em outros momentos da sua carreira, o impacto da pesquisa de Fogel decorria mais do debate que sua pesquisa gerava do que do que propriamente de seus resultados. Assim como seu colega de Chicago, Milton Friedman, a característica de polemista de Fogel tinha a capacidade de transformar suas pesquisas em algo impossível de ignorar. Isso talvez explique por que o resultado de Fogel ficou mais conhecido que a pesquisa de Albert Fishlow, American Railroads and the Transformation of the Ante-bellum Economy (1965), que encontrou, utilizando o mesmo método, um efeito três vezes maior para a ausência das ferrovias nos Estados Unidos. Posteriormente, John Coatsworth e William Summerhill mostraram que, em países com menor disponibilidade de transporte fluvial, como Brasil e México, as ferrovias foram mais importantes para o desenvolvimento econômico em comparação aos resultados de Fogel para os Estados Unidos.

A maior das controvérsias, no entanto, veio com os estudos sobre a escravidão. O ponto de partida desse projeto, realizado em conjunto com Stanley Engerman, foi a pesquisa prévia de Conrad e Meyer demonstrando que a utilização de escravos na produção agrícola dos Estados Unidos era mais eficiente que o uso de trabalhadores livres. O produto mais conhecido dessa pesquisa foi Time on the Cross, publicado em 1974, que reuniu os principais resultados da dupla e tinha como objetivo ser um livro de divulgação para um público mais amplo que o acadêmico. Fogel e Engerman questionaram interpretações tradicionais sobre os aspectos econômicos da escravidão como 1) sua irracionalidade econômica (escravos eram um investimento altamente lucrativo), 2) a escravidão era um sistema moribundo economicamente no período da Guerra Civil, 3) a utilização de mão de obra escrava na agricultura era menos eficiente que com trabalhadores livres, 4) escravidão era incompatível com um sistema industrial, 5) a economia do sul do Estados Unidos estava estagnando antes da década de 1860.

Ao se perguntar como os historiadores poderiam estar “tão errados” sobre uma das instituições mais importantes do século 19, Fogel provocou a fúria dos seus opositores. Além disso, ao defender que as condições materiais (não psicológicas) dos escravos eram “mais favoráveis” do que as dos trabalhadores livres no setor industrial, Fogel foi acusado de ser um apologista da escravidão. A crítica era claramente injusta (a esposa de Fogel, Enid, era afro-americana), mas a repercussão negativa gerou questionamentos se o livro não tinha manchado sua reputação mesmo no departamento de Chicago.[vi] Fogel respondeu a maior parte das críticas e o debate foi posteriormente publicado no importante livro The Slavery Debates (1952-1990). Além disso, Fogel publicou em 1989 o livro Without Consent or Contract, no qual discutiu temas como o problema moral da escravidão e amenizou algumas das conclusões mais estridentes de Time on the Cross. Ao final, mesmo com toda turbulência, Fogel triunfou ao transformar o debate sobre escravidão nos Estados Unidos.

O sucesso da cliometria para a reinterpretação da história norte-americana durante a década de 1960 resultou no reconhecimento. mesmo dos mais severos críticos. que as novas ferramentas trouxeram importantes contribuições e revitalizaram o debate histórico. O historiador econômico Alexander Gerschenkron afirmou na época que estava convencido que a Nova História Econômica era “de longe a melhor coisa que já aconteceu à disciplina por muito tempo”.[vii] Contudo, contemporâneos ao debate reconheceram que existia uma forte tendência a supor que só era “necessário aplicar a teoria econômica e as técnicas quantitativas à história para revelar novas verdades”.[viii] Essas críticas começaram a surgir porque os trabalhos cliométricos focavam excessivamente em relações econômicas, não reconhecendo plenamente o impacto de aspectos políticos para o desenvolvimento econômico, algo que era central na historiografia tradicional. Sob a hipótese de mercados perfeitos, as relações econômicas eram caracterizadas por trocas sem custos de transação, informação completa e sem externalidades. O mercado político, no entanto, apresentava características certamente opostas.[ix] Essa situação sinalizava que a teoria econômica utilizada seria insuficiente para a progressão da nova história econômica. Nesse momento é que a pesquisa sobre instituições de Douglass North buscou avançar por uma trilha diferente da de Fogel.

Assim como outros grandes acadêmicos, Robert Fogel buscou revolucionar a disciplina em que atuava. Esse objetivo nunca foi velado e, no início da década de 1970, Fogel editou um livro com Stanley Engerman chamado The Reinterpretation of American Economic History. O objetivo sempre foi mudar substancialmente a interpretação do passado e deixar um legado. Foi bem sucedido e, além dos livros, orientou os principais historiadores econômicos da geração seguinte. Poucos professores tiveram no currículo orientandos como Claudia Goldin, Michael Bordo, Richard Steckel, Robert Margo, Kenneth Sokoloff, John Komlos e Dora Costa. Após o Nobel, Fogel continuou inovando e ampliou sua linha de pesquisa sobre questões demográficas. O projeto, chamado originalmente de “tendências seculares na nutrição”, buscou analisar o progresso da potencialidade humana ao longo da história e resultou em dois livros: The Escape from Hunger and Premature Death, 1700-2100 e The Changing Body. Ao estudar tendências seculares de altura e nutrição em diferentes sociedades, Fogel de alguma forma manteve ideias que sempre estiveram presentes no seu trabalho. Assim como no seu primeiro livro, sobre ferrovias, Fogel mostrou que o fator fundamental para o desenvolvimento econômico não envolve simplesmente a adoção de tecnologias, envolve expandir o potencial do ser humano.

Thales Zamberlan Pereira

Doutor em economia pela FEA/USP, professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV/EESP) e, certa vez, companheiro de almoço de Robert Fogel.

Publicações: thaleszp.com

Notas

[i]Eric Hilt, “Revisiting Time on the Cross After 45 Years: The Slavery Debates and the New Economic History,” Capitalism: A Journal of History and Economics 1, no. 2 (July 29, 2020): 456–83, https://doi.org/10.1353/cap.2020.0000.

[ii]John R. Meyer and Alfred H. Conrad, “Economic Theory, Statistical Inference, and Economic History,” The Journal of Economic History 17, no. 4 (1957): 528.

[iii]Robert William Fogel, “The New Economic History. I. Its Findings and Methods,” The Economic History Review 19, no. 3 (1966): 642–56, https://doi.org/10.2307/2593168.

[iv]Robert William Fogel, “Historiography and Retrospective Econometrics,” History and Theory 9, no. 3 (1970): 256, https://doi.org/10.2307/2504408.

[v]Thomas C. Cochran, “Economic History, Old and New,” The American Historical Review 74, no. 5 (1969): 1568, https://doi.org/10.2307/1841325.

[vi]David Mitch, “The Contributions of Robert Fogel to Cliometrics,” in Handbook of Cliometrics, ed. Claude Diebolt and Michael Haupert (Cham: Springer International Publishing, 2019), 51, https://doi.org/10.1007/978-3-030-00181-0_49.

[vii]Alexander Gerschenkron, “History of Economic Doctrines and Economic History,” The American Economic Review 59, no. 2 (1969): 2.

[viii]Lance Davis, “The New Economic History. II. Professor Fogel and the New Economic History,” The Economic History Review 19, no. 3 (1966): 662, https://doi.org/10.2307/2593169.

[ix]Joseph D. Reid, “Understanding Political Events in the New Economic History,” The Journal of Economic History 37, no. 2 (1977): 302–28.

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