Nobel 2021: Card, Angrist e Imbens | por Maria Oaquim e Vitor Possebom

A Real Academia Sueca de Ciências premiou David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens com o prêmio Nobel de Economia de 2021. Enquanto o primeiro foi laureado por “contribuições empíricas à economia do trabalho”, os outros dois foram “por suas contribuições metodológicas para a análise de relações causais”. Card, Angrist e Imbens, conjuntamente com Alan Krueger, economista falecido em 2019 (que muito provavelmente teria dividido esse prêmio caso estivesse vivo), foram economistas centrais na “Revolução de Credibilidade da Economia”, movimento que se desenvolveu ao longo dos anos 90.

Para entendermos a contribuição desses economistas, faremos um breve resumo de como o campo da Economia estudava relações causais. Cientistas dizem que uma variável Y é causada por uma variável X se Y é afetada ao manipularmos X, enquanto mantemos todas as outras variáveis fixas. Por exemplo, se pudéssemos aumentar a quantidade de educação de uma pessoa enquanto mantemos fixa suas outras habilidades, o que aconteceria com o salário dessa pessoa? Ou, se pudéssemos aumentar o salário-mínimo em uma cidade enquanto mantemos constantes todas as outras condições do mercado de trabalho, o que aconteceria com a taxa de desemprego local?

A abordagem mais tradicional no campo da Economia antes dos anos 80 era estudar relações causais através de modelos de equações estruturais, ou seja, um sistema de equações que capturava o comportamento dos agentes. O principal desafio de uma análise estrutural que se propõe a investigar relações causais é a necessidade da estrutura estar corretamente especificada (Bank of Sweden, 2021). A complexidade de modelar o comportamento humano e as instituições apresentam desafios a essa abordagem. Uma outra abordagem, apesar de ser menos popular na época do que hoje em dia, era através de Experimentos Randomizados Controlados (RCT, na sigla em inglês), considerado o método ouro na análise de relações causais. Entretanto, por questões práticas e éticas, nem todas as perguntas conseguiam ser investigadas através desse método.

Como apontado por Angrist e Pischke (2010), é difícil dizer quando exatamente se iniciou a revolução empírica na economia. Contudo, um dos marcos desse movimento foi o artigo de Lalonde (1986). Ele demostrou como resultados de avaliação de programas de treinamento de emprego eram sistematicamente diferentes, se o método empregado era experimental ou não. Durante esse período, outros artigos como Ashenfelter (1978) e Ashenfelter and Card (1985), concluíram que o uso de dados longitudinais que não tinham a estrutura de quase-experimentos levava a estimativas pouco robustas para avaliação de programas de treinamento de emprego.

Foi especialmente a partir dos anos 90 que os economistas se voltaram a experimentos naturais para responderem diversas questões, em especial no campo de economia do trabalho. Não é à toa que o prêmio Nobel desse ano elegeu premiar conjuntamente os avanços empíricos em economia do trabalho e estudo de relações causais. Enquanto Card foi autor de diversos artigos em economia do trabalho que usavam experimentos naturais para análise causal de políticas públicas,

Angrist e Imbens desenvolveram técnicas estatísticas para analisar diversas perguntas por meio de experimentos naturais.

Um experimento natural é semelhante a um experimento aleatório controlado: uma variável X é manipulada enquanto todas as outras variáveis são mantidas fixas. Contudo, ele se diferencia dos experimentos controlados devido à fonte que está por trás dessa manipulação. Enquanto um pesquisador artificialmente randomiza os valores da variável X em experimentos controlados, a “natureza” aleatoriza os valores da variável X em experimentos naturais. Por exemplo, para entender o impacto do serviço militar obrigatório (variável X) em salários na carreira civil (variável Y), podemos utilizar as loterias de convocação para a Guerra do Vietnã (Angrist, 1990). Nessas loterias, a “natureza” aleatoriamente escolhe quem servirá no Exército, enquanto todas as outras habilidades profissionais da pessoa são mantidas constantes.

O trabalho de Angrist e Imbens nos permitiu entender que tipo de pessoa é impactada por experimentos aleatórios. Eles provaram, matematicamente, que esses experimentos naturais desvendam o efeito da variável X para aquelas pessoas que mudam o seu comportamento por causa da aleatorização feita pela “natureza”.  No experimento natural anteriormente citado, as loterias da Guerra do Vietnã nos permitem entender apenas o efeito do serviço militar no grupo que entrou no Exército por obrigação, o que seria diferente do impacto do serviço militar para os voluntários do Exército.

Enquanto Angrist e Imbens foram fundamentais para o desenvolvimento metodológico sobre experimentos naturais, Card escreveu artigos que são considerados marcos na aplicação desses métodos para diferentes questões em economia do trabalho. Um dos seus artigos mais influentes analisou os impactos do aumento do salário-mínimo (SM) no emprego (Card e Krueger, 1994). Anteriormente a esse artigo, o consenso entre economistas era que o salário-mínimo seria responsável por efeitos negativos sobre o emprego, assim como previsto nos modelos de competição perfeita. Nesse modelo, a imposição de um mínimo acima do salário pago em equilíbrio (ou seja, o salário compatível com o equilíbrio entre oferta e demanda por trabalho), resultaria em uma diminuição na demanda por trabalho (dado o aumento no custo do trabalho) e um aumento na oferta (dado que mais pessoas vão querer ofertar trabalho uma vez que salários aumentam). A consequência, portanto, seria um aumento do desemprego compatível com a diferença entre oferta e demanda por trabalho.

Para entender os efeitos causais do salário-mínimo em emprego em um estado que aumentou o salário-mínimo, nós, idealmente, gostaríamos de observar o seu contrafactual, ou seja, o que teria acontecido caso o salário-mínimo não tivesse aumentado no estado que estamos analisando. Assim, poderíamos comparar os resultados desses dois estados: o verdadeiro estado que observou um aumento de salário-mínimo e o estado contrafactual que não observou esse aumento. Contudo, esse contrafactual é impossível de ser observado.

Anteriormente a Card e Krueger (1994), a maioria das análises empíricas sobre salário-mínimo usavam métodos de séries de tempo e focavam no emprego de adolescentes[1]. Esses estudos encontravam elasticidades de salário-emprego entre -0.1 e -0.3, ou seja, um aumento de 10% do valor do salário-mínimo levaria a uma queda de emprego entre 1 e 3% para os adolescentes (Brown et al, 1982). O que a metodologia anterior fazia era correlacionar aumentos do salário-mínimo com emprego entre adolescentes, buscando ajustar por outras variáveis além do mínimo que poderiam afetar o emprego dos adolescentes no ano em questão. O problema central de análises desse tipo é que outros fatores não observáveis relacionados à decisão de aumento de salário-mínimo podem impactar o emprego. Por exemplo, em momentos de crise, normalmente observamos queda no emprego paralelamente a menor crescimento de salários, em especial para os trabalhadores na parte inferior da distribuição de renda. Se isso motiva o aumento do salário-mínimo, análises de séries de tempo erroneamente poderiam concluir que aumentos do mínimo levam a menor emprego, quando, na verdade, poderia ser a queda do emprego que está levando ao aumento do salário-mínimo.

Um método que conseguiu aliviar parte dos problemas da análise de séries temporais foi o método de análise de dados em painel, onde é possível ajustar por tendências comuns a todos estados em certo período (Card, 1992a; Card, 1992b). Entretanto, heterogeneidades não observadas entre estados naquele ano em específico ainda podem estar levando a estimativas equivocadas do efeito do salário-mínimo em emprego. Esse problema aconteceria, por exemplo, se estados com diferentes políticas de salário-mínimo fossem expostos a diferentes choques no mercado de trabalho. Se, no ano de aumento do salário-mínimo, um estado com aumento mais generoso também experimentou um choque negativo no emprego, isso poderia levar a uma superestimação do efeito do SM na queda de empregos.

Em 1992, New Jersey aumentou o salário-mínimo de $4.25 por hora para $5.05. Contudo, a Pennsylvania, estado vizinho, não implementou tal aumento. O artigo de Card e Krueger (1994) usa esse experimento natural para analisar o efeito do SM em empregos em cadeias de restaurante, onde muitos trabalhadores eram pagos com o salário-mínimo. Essa metodologia conseguiu contornar algumas das questões anteriormente apontadas ao analisar duas áreas muito próximas, mas separadas por uma fronteira estadual e, dessa forma, sujeitas a diferentes legislações de salário-mínimo. Assim, choques no mercado de trabalho que poderiam determinar o salário-mínimo não deveriam variar entre essas regiões muito próximas. Em outras palavras, a ideia é que a Pennsylvania funcionasse como um contrafactual para o que teria ocorrido em New Jersey se o salário-mínimo não tivesse aumentado.

Os resultados foram surpreendentes em relação ao que o modelo competitivo previa: os empregos na Pennsylvania caíram, enquanto em New Jersey, estado que experimentou o aumento do SM, cresceram. É importante pontuar que esse resultado não é uma aberração em relação a previsões teóricas. As empresas podem repassar o aumento de custos de trabalho para preços, mitigando os efeitos deletérios do SM em emprego [2]. Além disso, como os custos do trabalho não são compostos somente por salário, as firmas poderiam “compensar” com redução em outros custos. Uma outra explicação é que em um contexto em que certas empresas dominam o mercado de trabalho local, o que em economia denominamos monopsônio (um único empregador) ou oligopsônio (poucos empregadores), é possível que as empresas tenham o poder de estabelecer salários abaixo do que seria o salário no modelo competitivo. Nesse caso, o estabelecimento do salário-mínimo estimularia mais trabalhadores a ofertar emprego enquanto as firmas não reduziriam sua demanda por trabalho, pois elas poderiam arcar com o aumento de custos. Assim, em modelos de mercado não-competitivos, o aumento de salário-mínimo pode resultar em aumento de emprego.

É importante pontuar que o artigo de Card e Krueger (1994) não colocou um ponto final na questão dos impactos do SM no emprego. O próprio artigo recebeu críticas válidas como a de Neumark e Wascher (2000), que apontaram erros de medida na variável de salário. Reestimando o artigo com dados administrativos (em vez de dados de pesquisa), eles encontraram elasticidades mais compatíveis com o que a literatura previamente apontava. A controvérsia do salário-mínimo permanece para os Estados Unidos e outros países. Ademais, em um contexto com alta informalidade como o Brasil, o desafio da estimação dos impactos do SM sobre emprego são maiores (ver Haanwinckel e Soares, 2021).

Contudo, Card e Krueger (1994) foram um marco para a literatura de salário-mínimo, tanto pela metodologia usada, quanto pelos questionamentos ao antigo consenso de que mercados de trabalho funcionam como em modelos perfeitamente competitivos. A própria literatura teórica/estrutural em salário-mínimo e mercados não competitivos avançou bastante nos últimos tempos e nos permite entender melhor em que contextos os efeitos do SM em emprego podem ser maiores ou menores. Além disso, artigos empíricos mais recentes, que empregam métodos mais robustos, têm clara inspiração nele. Um exemplo é Dube et al (2010), onde os autores exploram descontinuidade geográficas no salário-mínimo (usando counties próximos, mas em diferentes estados) e investigam efeitos em empregos no setor de restaurantes. Os resultados indicam que elasticidade não é mais negativa que -0.147 ao nível de confiança de 90%.

O salário-mínimo é somente um dos exemplos da grande influência que os estudos usando experimentos naturais tiveram na compreensão de diversas políticas públicas. Outros exemplos são os estudos sobre impactos da imigração no mercado de trabalho (Card, 1990; Altonji e Card,1991) e efeitos de investimento em educação nos rendimentos futuros no mercado de trabalho (Card e Krueger; 1992). Graças aos trabalhos de Card, Angrist e Imbens, os economistas atualmente têm uma melhor compreensão das ferramentas necessárias para responder questões de grande importância para nossa sociedade.

Maria Oaquim
é Bacharel e Mestranda em Economia pela PUC-Rio.

Vitor Possebom
é Bacharel e Mestre em Economia pela EESP-FGV e Doutorando em Economia pela Universidade de Yale.

Notas

[1] A restrição para empregos de adolescentes era devido ao fato que muitos ganhavam um salário-mínimo e, portanto, quando o mínimo é aumentado, esse grupo é mais impactado.

[2] Um ótimo artigo que investiga empiricamente essa questão na Hungria é Harasztosi e Linder (2019) e, para os Estados Unidos, Renkin, Montialoux e Siegenthaler, 2020

Referências

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