João Doria vem conseguindo bastante atenção em nível nacional ao participar de ações que chamam a atenção da mídia e por enfatizar sua identidade de “gestor”. Recentemente, foi divulgado o programa de gestão de seu governo, com 50 metas em cinco eixos temáticos. Sua receita de gestão inclui PPPs, concessões, privatizações, e uma série de doações de mercadorias e serviços por empresas, como, por exemplo, a reforma dos banheiros do parque mais popular da cidade (o Ibirapuera), efetuada por uma grande construtora.
Embora eu não tenha objeções ideológicas a privatizações, PPPs e concessões bem desenhadas, acredito que o programa de gestão do prefeito não atende satisfatoriamente três aspectos fundamentais da gestão pública. Um deles é o cerne das competências gerencias do Estado. Os outros dois são dois eixos de atuação do Estado: a vulnerabilidade e o desenvolvimento humano. Falo primeiro das competências gerenciais.
Falta ao Estado brasileiro nos seus três níveis, como todo sabemos, a capacidade de entregar resultados satisfatórios à população, especialmente em função da alta carga de tributos cobrados. Há poucos dias, por exemplo, o Instituto Paulo Montenegro divulgou pesquisa mostrando que apenas 8% dos brasileiros têm plenas condições de compreender e se expressar por meio de letras ou números. Mas no Brasil não apenas a educação e a saúde são uma tragédia, especialmente para os mais pobres. Tragédia é a palavra. Talvez um dos melhores indicadores de um Estado ineficaz, a taxa de solução de homicídios no país não passa de 10%, refletindo apenas os casos de autoria facilmente conhecida, tipicamente crimes passionais e de vingança. Os exemplos são inúmeros.
Competências de gestão
No Brasil, o aparato estatal não desenvolve competências adequadas de gestão e fica na dependência de soluções pontuais, como o Corujão da Saúde de Dória, que são trazidas eventualmente pelos agentes políticos a cada ciclo eleitoral. Mas em todo governo existe uma espécie de tempo de validade dos programas implantados por uma nova gestão. Pois muitos programas públicos são encerrados quando um novo grupo político assume o poder: eles não criam raízes, não viram política de Estado, mesmo quando vão na direção correta. Se tiverem sorte, continuarão com outro nome.
Porém, o problema é mais profundo. Sua raiz está no modelo weberiano-taylorista que orienta o desenho da máquina pública no Brasil e asfixia a inovação e as competências gerenciais dos entes estatais. É um modelo que, em resumo, cria organizações fortemente hierárquicas, muito focadas em controle, sem foco em resultados efetivos, sem agilidade para enfrentar os crescentes desafios sociais, sem desenvolvimento de talentos gerenciais, com separação entre pensamento e execução e calcado na ilusão da previsibilidade. Uma das consequências é que é muito difícil manobrar o aparato estatal, asfixiado pela burocracia. Outra é o desperdício de talento humano. Lembro-me de um triste conselho que ouvi de algumas pessoas ao longo de minha carreira pública. O conselho era dado por colegas que tinham tentado, sem sucesso, produzir mudanças para melhor na ação do Estado. Segundo diziam, a melhor maneira de sobreviver no hostil ambiente burocrático do serviço público era aderir à teoria do canto: procure um canto, cumpra suas obrigações, mas se esconda (!). Sim, caros leitores, o serviço público no Brasil gera mecanismos perversos que desidratam seu capital humano, punem quem quer contribuir e não criam competências essenciais de gestão. Assim, não me causou surpresa um comentário recente (privado) de um ex-comandante de batalhão policial, que afirmou que no serviço público é fundamental ser formado em Direito, mas não em gestão. Pois o servidor em cargos mais altos vai dedicar a maioria absoluta de seu tempo ao inferno burocrático – controles sem fim, graus duplos de decisão, produção de normas para evitar o risco de ser responsabilizado por erros etc.
Uma metáfora interessante é comparar o modelo vigente a um sistema operacional, em cima do qual rodam os diversos aplicativos do Estado (saúde, educação, polícia etc.). Não há app que funcione bem rodando em um sistema operacional defasado e defeituoso. Para usar o exemplo da saúde, um acúmulo de exames em atraso, que é comum no Brasil todo, vai decorrer, no modelo atual, de uma combinação de fatores como manutenção inadequada em equipamentos, falta de profissionais, processos mal desenhados, burocracia e o próprio desenho deficiente do sistema (por exemplo, não lidando com as inevitáveis faltas de pacientes). Não há nada no modelo weberiano-taylorista que incentive ou mesmo permita aos profissionais e organizações de saúde lidar proativamente com o problema. Fica-se sempre na dependência dos agentes políticos ou de soluções provisórias, como mutirões. Nesse sentido, o programa de metas do governo Dória fala em considerar servidores públicos em agentes de transformação, mas não vai além disso.
Uma figura para resumir
A figura abaixo resume bem essa discussão. Todo ente estatal possui, ou deveria possuir, competências de gestão (por exemplo: inovação e gestão de pessoas) que deveriam decorrer de uma competência gerencial central. Isso se traduziria na capacidade dinâmica de desenhar processos, estruturas e papeis dentro da organização pública que permitissem constantemente avaliar seu desempenho e a eficácia das políticas públicas, testando a eficácia de novas abordagens, refletindo sobre erros e acertos, espraiando o aprendizado, ouvindo e interagindo com a população etc. A maioria das políticas públicas no Brasil, por exemplo, é mantida por hábito, sem que haja uma avaliação efetiva, periódica e pública de sua relação de custo-efetividade. O leitor conhece, por exemplo, a relação de custo-efetividade dos programas estaduais e municipais que dão prêmios em dinheiro para o contribuinte que insere seu CPF em notas fiscais?
O que a figura ilustra é que as competências de gestão dos entes públicos, que são atrofiadas no modelo weberiano-taylorista, determinam o funcionamento dos diversos apps estatais – educação, saúde, Fisco etc. E, a cada ciclo eleitoral, um conjunto de atores políticos (a equipe do prefeito, no caso da cidade de São Paulo) traz um repertório de competências e projetos que se “acoplam” ao que já existe no ente estatal. Esse acoplamento, que geralmente não ocorre sem tensões de lado a lado, pode tanto favorecer quanto prejudicar o desenvolvimento das competências periféricas, além de atuar sobre os diversos apps do Estado. Mas ele tipicamente não alimenta a capacidade central de gestão do Estado, gerando um círculo vicioso: um Estado pouco capaz de prover serviços de qualidade requer, a cada ciclo eleitoral, projetos capazes de entregar resultados melhores, mas como esses projetos raramente atuam na capacidade central de gestão, os problemas tendem a continuar ressurgindo, gerando a demanda por novas soluções temporárias.
O nosso modelo de administração pública leva, assim, a uma constante busca de band-aids. Alguns desses remendos podem até ser efetivos por um prazo maior, mas sem o enfrentamento do modelo continuaremos convivendo com entes estatais pouco eficazes. Isso gera ainda outros círculos viciosos: por exemplo, a evidência sugere que a percepção de retorno sobre os impostos pagos influencia diretamente na intenção de sonegação de impostos, a qual, por sua vez, quanto maior for, mais causa injustiça no ambiente competitivo de negócios, penalizando os contribuintes que cumprem suas obrigações.
Eixos da vulnerabilidade e do desenvolvimento humano
O que não integra o modelo mental dos gestores não pertence a seu mundo, não é gerenciado e nem cobrado. Pois vou destacar dois eixos de gestão pública historicamente ignorados no Brasil.
As primeiras fotos abaixo foram tiradas há alguns dias em uma visita ao Parque do Ibirapuera, na área em que há brinquedos de madeira para as crianças menores. A última foto mostra um semáforo de pedestres típico da cidade de São Paulo.
Dá para ver que os brinquedos mostrados na foto estão sem manutenção adequada, em situação até perigosa: há pregos salientes em arremedos de conserto, há brinquedos a ponto de se soltar e há até mesmo os que foram arrancados e jamais repostos. Essa situação de conservação deficiente no parque não é de hoje. Eu a observo há pelo menos duas gestões da prefeitura paulistana. Também não é privilégio do Ibirapuera. Há poucos dias, usuários relataram em reportagem de um grande jornal o estado de abandono do Parque Alfredo Volpi, no Morumbi, causado por encerramento ou redução de contratos de manutenção. O novo prefeito paulistano já anunciou a intenção de conceder a administração do Ibirapuera e de outros parques à gestão privada. Há mais 108 parques na cidade. Se bem desenhado, o contrato pode prever a correção dos problemas de manutenção. Mas o que dizer dos parques que não interessem à iniciativa privada? E as praças da cidade, onde historicamente a manutenção é ruim? E os parquinhos em escolas municipais? A prefeitura precisa ter capacidade gerencial para fazer ou contratar a manutenção.
Desenvolver ações no eixo da vulnerabilidade envolve detalhar situações, identidades e populações em risco. Mostrei acima um exemplo que submete crianças a situações de vulnerabilidade física. O eixo abriga ainda moradores de rua, segmentos da população que vivem em condições precárias (por exemplo, à beira de córregos), idosos, entre outros. Falemos de uma das principais identidades neste eixo, a de pedestre, que é uma das mais maltratadas na cidade de São Paulo. As travessias, como a mostrada na última foto acima, ficam em locais perigosos (esquinas) e a prioridade semafórica é sempre dos automóveis. Dados oficiais mostram que os pedestres representam cerca metade das vítimas de acidentes de trânsito na cidade. Outro dado é ainda mais assustador: o número de mortes de pedestres corresponde em média à metade do número de pessoas vítimas de homicídio na capital paulista. Idosos são vítimas frequentes. A prefeitura começou a testar ações (agora em maio) como aumentar o tempo de travessia para pedestres, mas isso é pouco. É preciso uma mudança radical de modelos mentais. É necessário assumir o ponto de vista do pedestre, que precisa fazer travessias em locais perigosos (esquinas) e é a última prioridade quando há veículos envolvidos. Redução de velocidade para veículos, redesenho de semáforos e faixas de pedestres são ações fundamentais em se tratando do vulnerável pedestre. Aqui o programa de gestão de Doria deixa novamente a desejar.
Falando, por fim, de desenvolvimento humano (eixo contemplado no programa do prefeito, mas de forma tímida), as evidências científicas apontam que existe um momento crítico na vida de uma criança, entre a gestação e os 3 anos de idade, no qual os principais mecanismos biológicos e psicológicos são formados. É a chamada primeiríssima infância. Em situação de vulnerabilidade social, a formação desses mecanismos é deficiente e, sem a ação estatal, gera indivíduos com maior propensão a replicar o ciclo do baixo desenvolvimento humano. O aprendizado formal tende a ser prejudicado, bem como outras competências, como as sociais e emocionais, gerando consequências que se estendem para toda a vida. Não se trata apenas de desperdiçar potencial humano: crianças geradas em situação de pobreza têm maior probabilidade de ter diversos problemas de saúde quando adultos, mesmo quando conseguem superar a barreira da pobreza. Em outras palavras, a pobreza cria uma marca permanente na vida das pessoas, em diversas dimensões – as evidências científicas são avassaladoras. Queremos isso para a nossa sociedade? Mundo afora, a forma como o Estado atenua esse problema é oferecendo creches e programas especialmente desenvolvidos para essa faixa etária tão importante. Por isso, tem sido decepcionante o programa e as ações dos prefeitos que têm passado pela cidade de São Paulo, que jamais ousaram dar esse passo tão importante e zerar a fila de creches na cidade (que atende, basicamente, a população mais pobre), preferindo priorizar outras demandas.
Então, a receita de gestão de Doria é ruim? Não necessariamente. Acredito, inclusive, que haverá bons avanços em algumas áreas. Mas a receita do prefeito repete a de seus antecessores e não enfrenta, no meu ponto de vista, as questões cruciais discutidas acima.
Hamilton Carvalho, Hamilton Carvalho, estuda sistemas sociais complexos. É doutorando em Administração pela FEA-USP, mestre em Administração pela mesma instituição, conselheiro da International Social Marketing Association e membro da System Dynamics Society