O Fim do Dólar?

Em sua recente visita à República Popular da China, o atual presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, fez um discurso no mínimo acalorado em completo ao seu plano de alinhamento geoeconômico com a superpotência asiática. No discurso, o presidente tocou em pontos como um fortalecimento das relações entre os membros do BRICS, maior necessidade de cooperação comercial e, o que chamou mais atenção, um questionamento sobre a supremacia do dólar como moeda internacional. Segundo o representante do executivo brasileiro, não haveria razão para o dólar ser a moeda mais utilizada no comércio internacional, que os países em desenvolvimento deveriam procurar alternativas e que tal alternativa poderia vir de uma moeda comum dos BRICS ou pelo uso do yuan chinês.

O discurso do excelentíssimo senhor presidente, todavia, não trouxe nenhuma novidade dentro do debate econômico internacional. Ele apenas reflete uma opinião a muito divulgada em círculos acadêmicos e de debate público de que o dólar americano, desde o fim da conversibilidade ao ouro em 1972, possui um “privilégio exorbitante” em ser a moeda utilizada na quase totalidade das transações internacionais. Segundo os críticos, os Estados Unidos utilizam essa prerrogativa de serem os emissores do dólar para poder emitir moeda em troca dos bens e serviços que importam do resto do mundo. Uma vez que eles podem emitir dólares a praticamente um custo marginal próximo de zero, eles poderiam financiar livremente seu déficit de conta corrente e não sofreriam, como outros países, crises de balanço de pagamento.

Essa é uma visão bem popular e que, como visto no discurso, tem impactado o pensamento em matéria de política econômica internacional. Contudo, essa visão está correta? Em meu julgamento não, pois ela ignora o básico da economia monetária internacional.

Quando é dito que os Estados Unidos podem pagar por bens e serviços simplesmente imprimindo dólares é geralmente ignorado a questão da razão pela qual os agentes econômicos estrangeiros aceitam dólares por suas exportações. Dizer que os estrangeiros simplesmente aceitam dólares é dizer que eles possuem demandas nominais por dólares e que esse seria seu fim de consumo ao exportar. Mas esse é o caso?

O que ocorre na realidade dos mercados é que um exportador aceita trocar seus bens por dólares por saber que existe uma demanda interna no seu mercado cambial nacional por aqueles dólares por parte de outros agentes. Assim, ele consegue converter seus dólares em moeda nacional transacionando a moeda americana com um agente que deseja aquela moeda para algum fim. Mas quais seriam tais fins?

  Em geral, é assumido que tais dólares seriam usados para pagar pelas importações de bens e serviços da economia que emitiu a moeda. Porém, como os críticos irão apontar muito bem, os Estados Unidos exportam bens e serviços muito menos do que importam; logo a lógica do privilégio exorbitante se mantém. Todavia, tais dólares também podem ser utilizados para comprar ativos e capital. Essa é a chave da questão do balanço de pagamentos dos EUA. Os estrangeiros podem utilizar dólares tanto para comprar bens e serviços como ativos; seja ações de empresas americanas, propriedades, plantas industriais ou títulos do tesouro.

O que os críticos não observam é que os Estados Unidos, como todo país desenvolvido normal, equilibram seu déficit do balanço de pagamentos mantendo uma conta de capital estável:

A estabilidade da conta capital dos Estados Unidos é um reflexo da enorme demanda estrangeira por ativos americanos. Tal pode ser observado no fato de que a conta de investimento estrangeiro direto dos EUA praticamente paga e com sobra o déficit corrente:

Isso pode ser uma surpresa para o público leigo, pois geralmente pensamos os Estados Unidos como um “exportador” de investimento estrangeiro direto. Entretanto, o fato é que os Estados Unidos são o maior receptor de investimentos estrangeiros no mundo. Dentro do BRICS, apenas a China consegue um nível semelhante do nível de investimentos recebido pelos americanos e os outros membros sequer chegam perto.

Mas o que exatamente leva um estrangeiro a investir nos EUA? O que eles fazem com seus dólares? Como observa os pesquisadores do FMI, Jamick Damgaard e Carlos Munõz, boa parte desse fluxo está relacionada em parte com serviços financeiros prestados em território americano e compra de ativos. Os Estados Unidos concentram em seu território alguns dos maiores centros financeiros mundiais. Se usarmos o índice GFCI (global financial center index) para classificar os centros financeiros e olharmos onde esses centros estão distribuídos geograficamente, veremos que os Estados Unidos sozinhos concentram 30% dos 20 maiores centros financeiros globais; incluindo o maior de todos eles (Nova York). A China vem logo em seguida com 20%, porém tal só é conseguido se contabilizarmos Hong Kong como um centro chinês. Do contrário, os chineses concentram apenas 15% ainda.

Fonte: Yahoo Finance

Boa parte desses fluxos é devido serviços financeiros prestados em território americano e para suas multinacionais, porém outra parte é derivada da compra de ativos, como ações de empresas. Dentre esses ativos financeiros comprados o mais emblemático são os t-bonds (títulos de dívida do tesouro americano). Os títulos públicos americanos são considerados o ativo financeiro mais próximo de um livre de risco no mundo. Existe uma demanda enorme por eles para compor portfólios e fundos de renda fixa. A consequência disso é que a política fiscal americana, mais do que a política monetária, acaba influenciando na atratividade do dólar em relação a outras moedas.

Entretanto, por qual razão os títulos americanos são considerados tão atrativos? Algo a ser lembrado é que títulos públicos são meramente certificados de direito futuros a porcentagens do resultado primário das contas públicas de um país. Logo, quando um investidor compra um t-bond ele está fazendo isso com a expectativa de que o governo americano irá gerar resultados primários positivos em algum momento futuro ou que tal título continuará estável em longo prazo (o que implica em um risco fiscal estável). Ou seja, os investidores apostam que o governo conseguirá gerar receitas em longo prazo o suficiente para cobrir suas despesas não-financeiras; o que implica que também estão apostando no crescimento econômico real dos Estados Unidos. E essa é a chave de toda questão.

No fim das contas o dólar se mantém devido os agentes econômicos estrangeiros acreditarem na força da economia real americana. Os Estados Unidos possuem ainda as maiores multinacionais do planeta, uma economia dinâmica sem rivais, a quase totalidade das startups do mundo e de longe o maior fluxo de inovações gerenciais e tecnológicas do planeta. Isso nos leva a conclusão de que existe uma demanda global por dólares e que o déficit americano é meramente um reflexo de oferta para atender essa demanda. Uma redução do déficit corrente americano, como o tentado por Donald Trump, poderia causar desequilíbrios financeiros globais.

Algum membro do BRICS consegue rivalizar com isso? A meu ver não.

Se a China quisesse assumir o lugar dos Estados Unidos na ordem monetária global seria necessário uma liberalização de seus mercados financeiros notoriamente regulados, que eles tivessem déficits de conta corrente para ofertar mais yuans para os outros mercados (o que é quase um pecado capital no dicionário de política econômica chinesa) e que sua economia fosse mais dinâmica no sentido de gerar inovações tecnológicas originais e startups. Mas esse dificilmente é o caso atual. Dessa forma, mesmo com os problemas econômicos recentes nos Estados Unidos, alguém poderia dizer: “o dólar está morto! Longa vida ao dólar!”

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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