O gradual fim da utopia remota

Em 1890, o cinematógrafo dos irmãos Lumière foi saudado como o futuro da arte e da comunicação. Esperava-se que substituiria o teatro, os livros e, quem sabe, até o rádio. No entanto, em pouco tempo, seu impacto revolucionário foi suavizado: o cinema evoluiu, mas jamais extinguiu as outras formas de expressão. A história está repleta dessas promessas de mudança definitiva que acabam encontrando resistência ou retornando parcialmente ao estado anterior. O home office talvez esteja trilhando caminho semelhante.

A pandemia da COVID-19 foi um divisor de águas no mundo do trabalho. De um dia para o outro, empresas que jamais haviam cogitado a possibilidade de trabalho remoto se viram obrigadas a operar 100% online. Para a geração Z, que entrou no mercado de trabalho no meio desse turbilhão, a ideia de “bater ponto” cinco vezes por semana em um escritório fechado soou anacrônica desde o início. Essa geração valoriza tempo, autonomia, flexibilidade e não hesita em trocar salários mais altos por qualidade de vida.

Mas não é apenas uma questão geracional. A globalização digital e a economia em rede têm favorecido os que ousam romper com o modelo tradicional de 9 às 18h. Para esses profissionais: freelancers, nômades digitais ou funcionários de empresas internacionais, o local de trabalho importa menos do que o impacto do trabalho entregue. A troca é clara: quem paga o preço da autonomia, muitas vezes com menos estabilidade, colhe a liberdade de organizar o próprio tempo e espaço.

E há pesquisas que sustentam esse movimento. Um estudo da Universidade de Stanford, liderado por Nicholas Bloom, acompanhou por dois anos o desempenho de funcionários remotos de uma grande empresa chinesa. O resultado? A produtividade aumentou 13%, e a taxa de desistência voluntária caiu pela metade. Outros estudos internacionais apontam benefícios adicionais, como economia de tempo no trânsito, menos absenteísmo e maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Esses ganhos individuais refletem também em externalidades positivas para a sociedade. Um pai ou mãe presente colabora diretamente com a formação emocional e cognitiva dos filhos. Mais tempo livre permite que profissionais pratiquem atividades físicas, busquem saúde mental e se engajem em comunidades. Um país que promove o bem-estar cotidiano da sua população, ainda que de forma indireta, colhe frutos em áreas como educação, saúde pública e segurança, que por sua vez, impactam em cheio o aumento da produtividade e abre fronteiras para promoção de inovações tecnológicas.

Ainda assim, o que vemos, principalmente após o fim da pandemia, é uma retomada silenciosa, e às vezes forçada, do trabalho presencial. Em países como Alemanha, Canadá, Reino Unido e Holanda, o modelo híbrido ganhou estrutura e apoio institucional. Já em países como o Brasil, Índia e Estados Unidos, muitas empresas vêm pressionando para o retorno completo aos escritórios.

De acordo com uma pesquisa da Microsoft Work Trend Index (2023), um dos principais motivos citados por executivos para a volta ao presencial é a suposta perda de “cultura organizacional” e de “inovação espontânea”. A ideia é de que interações casuais no café ou no corredor gerariam criatividade, algo que o Zoom ou o Teams não conseguiriam replicar.

No entanto, há motivações menos declaradas, mas igualmente poderosas. A lógica do controle social persiste nas organizações: ver para crer. A presença física do funcionário, muitas vezes, é menos sobre trabalho e mais sobre vigilância e disciplina. Em contextos com heranças autoritárias, o modelo do “coronelismo corporativo” ainda dita a cultura de muitas empresas, mesmo que sob a fachada de escritórios modernos. A reverência ao chefe, o cumprimento performático e a lógica de “estar disponível” continuam sendo ferramentas de poder.

Além disso, há uma distinção central raramente dita em voz alta: a função objetivo do empregado e do empregador é distinta. No campo da economia, chamamos de função objetivo aquilo que cada agente tenta otimizar. Para o trabalhador, a função objetivo pode envolver estabilidade, tempo livre, bem-estar e segurança. Já para o empregador, a função objetivo gira em torno de produtividade, lucro e controle. Esses objetivos não são necessariamente conflitantes, mas tampouco são idênticos e forçar uma simetria entre eles no modelo presencial ignora essa diferença fundamental.

Se olharmos de novo para o exemplo do início, assim como o cinematógrafo não matou o teatro, o home office não deve extinguir o trabalho presencial. Mas, tampouco deve ser enterrado precocemente por pressões conservadoras. Como dizia o matemático e filósofo Bertrand Russell, “O medo é a principal fonte de superstição e uma das principais fontes de crueldade. Vencer o medo é o início da sabedoria.” Recusar o novo por medo de perder o controle é um atraso travestido de tradição. A “morte” do home office talvez não seja inevitável, mas sim uma escolha coletiva de recuar no caminho da evolução do trabalho.

Marlon Cecilio de Souza
é Economista e Especialista em Política e Sociedade. Atualmente trabalha como analista de risco de crédito no The Bank of New York.

Referências

BLOOM, Nicholas et al. Does working from home work? Evidence from a Chinese experiment. Quarterly Journal of Economics, v. 130, n. 1, p. 165–218, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1093/qje/qju032. Acesso em: 6 jun. 2025.

MICROSOFT. Work Trend Index: 2023 Annual Report – Will AI Fix Work? Redmond: Microsoft, 2023. Disponível em: https://www.microsoft.com/en-us/worklab/work-trend-index. Acesso em: 6 jun. 20

25.

RUSSELL, Bertrand. Unpopular Essays. London: George Allen & Unwin, 1950. Inclui o ensaio “An Outline of Intellectual Rubbish”.

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