
Na mitologia grega, Prometeu foi o titã que deu o fogo aos seres humanos, até então exclusivo dos deuses. Como punição, Zeus ordenou que ele fosse acorrentado ao monte Cáucaso, onde uma águia devorava seu fígado durante os dias. Às noites, o órgão se regenerava, permitindo que o tormento recomeçasse até que fosse cumprido o prazo de 30 mil anos estipulado para o castigo. Lembro-me do terror que essa imagem mental me causava quando criança, ao ler a história no livro de Monteiro Lobato.
Saindo da mitologia, o Bitcoin foi criado como a primeira forma de valor totalmente digital, descentralizada, verificável, inconfiscável e com taxa de expansão limitada e previsível. Pode-se dizer, sem exagero, que foi um grande presente à humanidade. Ainda assim, por cerca de quinze anos, o Bitcoin esteve marginalizado do mercado financeiro dos Estados Unidos, o Olimpo do capitalismo mundial.
Apesar de ter sido acolhido em outras regiões e de uma valorização estupenda, o Bitcoin não conseguiu desenvolver todo o seu potencial. Não apenas pelo acesso limitado ao maior mercado financeiro do mundo, mas também por algumas dolorosas bicadas que a águia careca deu em seu fígado. A pior delas provavelmente foi a chamada “Operação Choke Point 2.0”, deflagrada em 2023. Nela, agências do governo americano voltaram-se contra o setor cripto, com processos contra exchanges e restrições bancárias a empresas ligadas aos ativos digitais. Por mais que esse castigo não pareça aterrorizante para crianças, ter o governo da mais poderosa nação do mundo numa ofensiva contra o setor tirou o sono de muita gente e, evidentemente, impactou negativamente os preços.
Em 2024, porém, essa realidade mudou. Se na mitologia foi Hércules quem libertou Prometeu, no mundo real a libertação do Bitcoin veio por decisão judicial. Após ter seu pedido de conversão do trust GBTC em ETF de Bitcoin spot rejeitado, a Grayscale entrou com um processo contra a SEC. A Justiça entendeu que a agência havia agido de forma arbitrária e inconsistente. Essa decisão abriu caminho para a aprovação dos ETFs de cripto spot. Uma dezena deles estreou em 11 de janeiro de 2024.
Livre das correntes, o Bitcoin caiu nas graças do mercado tradicional. Em 18 meses, o IBIT, ETF da BlackRock e líder do segmento, já recebeu mais de US$ 50 bilhões em aportes líquidos, tornando-se o ETF de crescimento mais rápido da história. Com a valorização do Bitcoin no período, o fundo já acumula US$ 80 bilhões em ativos, seguido pelo ETF da Fidelity, com mais de US$ 23 bilhões. No total, há mais de US$ 140 bilhões investidos em ETFs de Bitcoin spot nos EUA, cujo volume negociado em junho superou os US$ 300 bilhões.
Os números impressionam, mas não contam toda a história. Em março de 2025, o presidente Trump assinou uma ordem executiva para a criação de uma reserva estratégica federal de Bitcoin, nos moldes das reservas de petróleo e ouro. Dezesseis estados tramitam propostas semelhantes, com o Texas entre os mais avançados, e outros países começam a seguir o mesmo caminho.
Como era de se esperar, tais avanços se refletiram no preço. Dezoito meses após o lançamento dos ETFs, o Bitcoin acumula uma alta de mais de 150%, operando ao redor dos US$ 118 mil, sua nova máxima histórica. O Bitcoin entrou para o rol dos maiores ativos do mundo em capitalização de mercado, ao lado do ouro, da prata e de ações de empresas como Google, Microsoft e Amazon.
O grande progresso observado até aqui ainda é pouco se comparado ao que está por vir. O total alocado em Bitcoin e outros criptoativos ainda representa uma fração ínfima do seu potencial. Os recursos investidos no setor equivalem a menos de 5% do valor de mercado do S&P 500. Grandes investidores institucionais, como os fundos de pensão americanos, ainda estão entrando aos poucos. As reservas de Bitcoin por governos seguem, em sua maioria, em estágio de discussão. A via é longa, mas, pela primeira vez, está livre de bloqueios estruturais.
De volta à história de Prometeu, os relatos sobre sua jornada após a libertação são poucos e pouco consistentes. Ao que tudo indica, ele já havia cumprido sua missão antes do castigo. O Bitcoin, por sua vez, só depois de liberto, pode realizar plenamente sua vocação titânica: revolucionar a forma como pessoas, empresas e governos enxergam o que é, de fato, uma reserva de valor.
João Marco Braga da Cunha
Economista e especialista em criptoativos