O velho e o novo mercado de gás

No dia 20 de julho de 2020 o presidente da câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, desobstruiu o andamento da Nova Lei do Gás, o Projeto de Lei 6.407 / 2013, e definiu o Deputado Laércio Oliveira (PP-SE) como relator do projeto. O Brasil é um dos países em que o preço do gás está entre os mais caros do mundo. Enquanto nos EUA, Alemanha, Portugal e Inglaterra o gás natural é vendido, respectivamente, em dólares por milhão de Btu, em torno de 3,0, 8,0, 7,5 e 7,5, no Brasil o valor chega a US$ 14 / MMBtu, mais que o dobro da média dos países citados e 4,5x mais caro que o preço nos EUA.

O mercado de gás é dividido em quatro principais segmentos: (i) Extração, (ii) Processamento, (iii) Transporte e (iv) Distribuição. No Brasil, a extração de gás se dá principalmente em campos em mar (offshore) associada a extração de petróleo. A Petrobrás domina 75% desse segmento, sendo que os demais 25% são exercidos por players privados. Após a extração, o gás natural é depositado nos gasodutos de escoamento e transportados do alto-mar até o litoral, onde são processados. Todos os gasodutos de escoamento são detidos pela Petrobrás, dessa forma, os 25% restantes são obrigados a vender o seu gás na “boca do poço” para a Estatal de Petróleo. Atualmente, existem dois gasodutos de escoamento no Brasil, o Rota 1, que leva o gás natural da Bacia de Santos (Pré-Sal) ao litoral de São Paulo, e o Rota 2, que leva o gás da Bacia de Santos até o Rio de Janeiro, ambos pertencentes a Petrobrás. A mesma também está investindo na construção de mais um gasoduto de escoamento, que deve ficar pronto até 2021, o Rota 3, e que também levará o gás da Bacia de Santos ao Estado do Rio de Janeiro.

A etapa de processamento é dominada integralmente pela Petrobrás, fazendo com que a Estatal detenha, na prática, o monopólio da oferta de gás no Brasil. Após o processamento, o gás natural é transportado em gasodutos de transporte para os city gates, de onde são distribuídos para o consumidor final. Existem no Brasil quatro principais Gasodutos de transporte: (i) Malha Sudeste, (ii) Malha Nordeste, (iii) Gasbol – Gasoduto Bolívia Brasil e (iv) Gasene – que interliga a região Sudeste com a região Nordeste. Até o ano de 2016, a Petrobras detinha a totalidade dos gasodutos acima citados. Nos últimos quatro anos, a Malha Sudeste foi vendida para a Brookfield, e a Malha Nordeste e a Gasene foram vendidas para um consórcio formado pela Engie e Caisse des Dépôts (Petrobrás manteve participação minoritária de 10% nas três). Atualmente, o único gasoduto de transporte controlado pela Petrobras é o Gasbol. Apesar disso, a Petrobrás manteve o direito de carregamento em todos os gasodutos de transporte, mantendo, na prática, o monopólio da movimentação do gás no País.

A etapa seguinte é a de distribuição, que leva o gás dos city gates até o consumidor final. Essa atividade é de responsabilidade dos Estados, conforme definido na Constituição Federal, artigo 25, § 2. Em geral, esses serviços são prestados por empresas estatais que detém o monopólio da atividade na região, sendo que em muitas a Petrobrás detém participação minoritária. Normalmente, a política tarifária consiste na aplicação de uma margem de 20% sobre o custo da atividade (Opex + Capex), sem levar em consideração o custo de oportunidade de capital. Essa forma de precificação da tarifa não cria estímulos a novos investimentos e redução de custos, já que quanto maior o custo maior o preço praticado. A exceção fica por conta dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, que privatizaram as suas distribuidoras na segunda metade dos anos 90 e instituíram agências reguladoras que buscam determinar níveis tarifários que estimulem novos investimentos e maior eficiência. No Rio de Janeiro existem duas distribuidoras, Ceg e Ceg Rio, ambas pertencentes ao grupo Naturgy, e em São Paulo existem três Comgás, Gás Brasiliano e Gás Natural Fenosa (essa última também pertencente ao grupo Naturgy). Não à toa esses dois estados são os que apresentam o maior atendimento de gás no Brasil, 3,2 milhões de clientes em conjunto, enquanto a soma de todos os demais Estados não passa de 500 mil clientes atendidos.

Ao longo da década de 2010, alguns Estados instituíram a figura do consumidor livre, isto é, certos consumidores, que demandam elevados níveis de consumo de gás, podem comprar o gás diretamente do produtor ou de algum comercializador pagando à distribuidora somente pelo serviço de utilização da rede de distribuição. Embora essa medida visava aumentar a concorrência no mercado e reduzir o preço do gás, o seu efeito prático foi muito tímido, já que a Petrobras continuou a deter o monopólio da oferta de gás no país.

Nesse contexto, o Projeto de Lei 6.407/2013 vem com o objetivo de dar maior dinamismo ao mercado de gás e reduzir o monopólio da Petrobrás no setor. Dentre as suas alterações mais importantes está o fato de que os gasodutos de escoamento estarão sujeitos ao acesso de terceiros, conforme regulação definida pela ANP. Essa ligeira modificação acabará com a necessidade de venda direta do gás na “boca do poço” para a Petrobrás, permitindo que outros players entrem na etapa de processamento. Outra modificação significativa consiste na redução para zero das alíquotas de PIS e COFINS incidentes na importação e sobre a receita bruta de venda no mercado interno de gás natural. Alguns substitutivos ao PL ainda vão mais longe ao, por exemplo, proibir que uma mesma empresa detenha, simultaneamente, participação nas atividades de exploração e transporte de gás.

Tão importante quanto o Projeto de Lei é a intenção da Petrobrás em colaborar com a sua redução da participação no setor, a qual foi formalizada em um Termo de Compromisso assinado em conjunto com o CADE em julho/2019. No Termo, a Petrobrás se compromete a abrir mão da sua exclusividade de acesso aos gasodutos de transporte e reforça seu compromisso de venda do controle do GASBOL, das participações minoritárias nas demais transportadoras de gás natural e de suas participações diretas e indiretas nas distribuidoras estaduais, além de outros compromissos assessórios.

A discussão sobre o tema no Congresso será boa e interessante de acompanhar. O Novo Marco do Gás tem grande potencial para atrair novos investimentos ao setor e reduzir o preço no Brasil a patamares próximos a média internacional, reduzindo o custo para a indústria e aumentando competividade das nossas empresas. Estimativas indicam que uma redução de 50% no preço do gás poderia impulsionar o PIB Industrial em mais de 10%. Mas tudo isso dependerá da versão final do Projeto de Lei aprovado.

Victor Cezarini 

Mestre em Economia pela Universidade de São Paulo e Assessor de Desestatização do Governo de Minas Gerais.

Sair da versão mobile