O figurino é bem conhecido: emblemas nacionalistas e muito ódio no coração. A mais exaltada do grupo era uma senhora bem pequenininha. Segurava um microfone que ampliava ainda mais seus berros contra comunistas, terroristas, imigrantes, estupradores e muçulmanos, que para ela pareciam fazer parte de uma categoria só.
Passei por eles quando se preparavam para sair da calçada e marchar pelo asfalto da Av. Paulista, escoltados pela Polícia Militar, em frente ao prédio da Gazeta. Fiquei sabendo só depois que um descendente da família real brasileira também estava lá. Também só no outro dia soube do tumulto que encerrou a marcha contra a nova Lei de Imigração, que pedia para que Michel Temer não sancionasse o texto que foi aprovado pelo Senado no dia 18 de abril.
A reportagem do El País sobre a macha trouxe em seu título: “Protesto da direita anti-lei de migração incorreu em crime, diz especialista”[1]. Com alguns “especialistas” sobre o assunto, traz a opinião compartilhada por muita gente que a liberdade de expressão precisa ter limites e que esses limites são encontrados em outros valores, como a dignidade, direitos humanos e a liberdade religiosa.
Mas a liberdade de expressão não é um princípio que deve ser contrastado, limitado ou ponderado com outros princípios que encontramos no texto constitucional. Não é assim que a ela funciona. Não existe legitimidade democrática sem liberdade de expressão. Não podemos exigir que estes manifestantes respeitem a lei contra a qual eles se manifestam sem antes permitir que expressem suas convicções sobre como esta lei deveria ser.
Mas e o ódio? E os insultos?
Insultar é uma forma de expressão. Uma forma de expressão muito clara, aliás. Por morar aqui na região da Av. Paulista, já ouvi que coxinhas e petralhas são pessoas depravadas; que todo político é ladrão e vagabundo; que bichas vão para o inferno, que sua forma de amor é imunda e não natural; que Michel Temer é satanista e vendido para os Estados Unidos; já vi uma travesti encenando uma crucificação e um sindicalista bêbado gritando num carro de som contra o neoliberalismo – esse último na semana passada. Seria tolo, errado e sem sentido exigir que eles encontrassem outra forma de se expressar. No momento em que a ofensa pessoal ou grupal é tida como critério para limitar o discurso público, acabamos com o próprio sentido e com valor da liberdade de expressão.
Ninguém tem o direito de não ser ofendido, nenhuma autoridade, nenhum grupo, religião ou partido. E isso é particularmente importante no Brasil, uma democracia recente, mas que há pouco tempo perseguia, torturava e censurava quem era de esquerda ou simplesmente se manifestava contrariamente ao regime.
Em um episódio que ficou conhecido como “A Gripe”, em novembro de 1970, a redação inteira do jornal Pasquim foi presa por publicar uma sátira da famosa pintura de Pedro Américo, onde Dom Pedro, ao invés de gritar independência ou morte, gritava “Eu quero mocotó!”. Ficaram dois meses “gripados”.
Quando o filme de Jean Luc-Godard “Je Vous Salue, Marie” foi censurado no Brasil em 1986, o cantor Roberto Carlos enviou o seguinte telegrama para o Presidente José Sarney:
“Cumprimento Vossa Excelência por impedir a exibição do filme ‘Je vous salue, Marie’, que não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da Humanidade. Deus abençoe Vossa Excelência. Roberto Carlos Braga.”
Olhando para trás, a censura do Pasquim e Godard nos aparece como o resquício de um tempo tosco e autoritário. O grupo anti-imigração que eu tive o desprazer de encontrar era a encarnação do absurdo de nossa época. Mas a censura ou prisão daquelas pessoas por suas opiniões seria um insulto à nossa democracia em construção.
Guilherme Bandeira bacharel em direito pela FGV-SP, filosofia pela USP e mestre (LLM) pela Universidade de Nova Iorque.
Notas:
[1]http://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/04/politica/1493851938_726291.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM