Ordoliberalismo: entre o fracasso do laissez-faire e o trauma do nazismo

A Segunda Guerra Mundial havia acabado, a ameaça nazista foi derrotada e o território alemão partilhado entre os Aliados. Uma velha questão foi novamente posta: como reconstruir uma economia em frangalhos?

Na economia, os traumas passados e atuais eram diversos. O Tratado de Versalhes infligiu severas restrições à nação alemã após o término da Primeira Guerra. A hiperinflação da década de 1920 chegou a fazer com que os preços dobrassem a cada dois dias.

A economia liberal da República de Weimar fracassou, uma de suas notáveis características era a cartelização dos mercados. Assim foi semeada a descrença social propícia para a ascensão do Nazismo, regime marcado por atrocidades humanitárias envolvendo a morte de milhões de pessoas e cuja conduta econômica era notadamente intervencionista, ainda mais considerando o contexto bélico da época. Como tratar uma nação cujo tecido socioeconômico fora recentemente rasgado pelo intervencionismo nazista, cujas cicatrizes deixadas pelo laissez-faire ainda eram facilmente visíveis e a febre da hiperinflação ainda pairava, tal qual um fantasma, sobre a memória da sociedade?

Vigoravam controles sobre preços e salários, as alocações de recursos como comida, água e combustível eram impostas e haviam diretrizes para a sua racionalização dada a extrema escassez. Esse era o diagnóstico do território sob comando dos Estados Unidos e do Reino Unido, que mais tarde (somado ao território sob controle francês) daria origem à Alemanha Ocidental.

Uma reforma monetária estava sendo preparada, o Reichsmark seria substituído pelo Deutsch Mark, quando o oficial americano Lucius Clay entrou em contato com Ludwig Erhard, um dos principais responsáveis pela transição entre as moedas:

— Professor Erhard, meus assessores dizem que você está cometendo um grande erro.

Erhard respondeu:

— Meus assessores dizem o mesmo.

Esse “grande erro” seria a remoção dos controles econômicos vigentes, medida defendida Erhard e, na verdade, apoiada por Clay diante da oposição de grande parte dos oficiais americanos, dentre eles o notável economista John Kenneth Galbraith. As reformas prosseguiram e a economia revigorou, superando os desempenhos francês e britânico, mesmo que a nação alemã tenha sido menos favorecida pelo Plano Marshall em termos relativos. Não apenas superando o temporário controle intervencionista, não somente recorrendo aos mecanismos de mercado, mas adotando uma nova abordagem político-filosófica para a economia política, o Ordoliberalismo.

O prefixo ordo — palavra originária do latim — significa ordem. Logo, o Ordoliberalismo é intrinsecamente liberal embora não radical e ordenado sem ser autoritário. Essa corrente de pensamento havia surgido há algumas décadas, oposta ao nacional-socialismo de Hitler e comumente ligada aos acadêmicos das áreas da economia e do direito na Universidade de Freiburg. Posteriormente, o Ordoliberalismo permearia o sistema mercados-sociedade-Estado através de três pressupostos:

  • Preservação da competição nos mercados;
  • Preocupação com a “questão social”;
  • Proteção do Estado diante de interesses especiais;

A partir da reconstrução pós-guerra, esses pressupostos se manifestam na denominada economia social de mercado, onde há uma cisão entre a liberdade individual e a liberdade dos mercados em relação ao Estado. Essa concepção econômica é simbolizada por um popular slogan da época: “Prosperidade para Todos!”.

Primeiramente, o próprio funcionamento dessa economia através dos mecanismos de mercado é constitucionalizado. Logo, está fora do alcance dos legisladores e do ciclo político. Sendo assim, diferentemente do liberalismo clássico, os ordoliberais não compreendem a liberdade como um meio para alcançar a competição e tampouco o Estado como entidade antagônica. Pelo contrário, a competição é o meio necessário para que a liberdade econômica seja alcançada e o grande antagonista, por sua vez, é o monopólio privado. Portanto, o Ordoliberalismo se opõe às recomendações americanas em prol de uma economia oligopolizada. Não obstante, prega que é necessário haver um Estado forte e inteligente para atuar com rigor, mas claramente delimitado em suas atribuições. Eventuais intervenções têm como horizonte a desconcentração do poder econômico nos mercados dominados por um ou poucos agentes, ou seja, as regras do jogo não devem favorecer os ricos e poderosos.

Em segundo lugar, a preocupação com a questão social baliza a execução de políticas sociais. Essas não se tratam só de transferências monetárias, mas dizem respeito às transformações estruturais que visam a melhoria das condições de vida das pessoas. Essa orientação denominada Vitalpolitik é, na interpretação de Michel Foucault, uma jornada em busca da racionalidade econômica das relações sociais capitalistas. A aversão ao fenômeno da proletarização implica na apresentação o indivíduo enquanto cidadão. Assim, sua integração em uma sociedade empreendedora, que preza pela liberdade, pela responsabilidade e pela propriedade privada, ocorre de forma orgânica. Ademais, essa visão de mundo rejeita o coletivismo político e o igualitarianismo social e, consequentemente, não almeja a socialização do Estado e sim a estatização da sociedade.

No terceiro aspecto¹, o Estado não deve infringir a sociedade civil, estando acima da economia e protegido da colonização por parte dos grupos de interesse. Para isso o equilíbrio entre o poder público e o poder privado é essencial, dado que suas intervenções podem minar a própria competição que deveria promover e sustentar. O papel do Estado e o arcabouço ordoliberal como um todo é descrito por Wilhelm Röpke da seguinte forma:

“[Nosso programa] consiste em medidas e instituições que transmitem à competição a estrutura, regras e maquinações da supervisão imparcial cujo sistema competitivo precisa tal como qualquer jogo ou disputa para que não se degenere em uma briga vulgar. […] Isso pressupõe um discernimento econômico maduro por parte de todos os corpos responsáveis e um Estado forte e imparcial. (tradução do autor)”

Ultimamente, discussões como “o Nazismo é de esquerda!” passaram a ter alguma relevância no cotidiano de certa parte dos brasileiros. Porém, o recorte da história alemã durante a primeira metade do século XX mostra justamente que quando se trata da realidade econômica e social não há espaço para os “ismos” do simplismo e do maniqueísmo.

¹Vide o capítulo 9, ‘The Postwar German “Wonder Economy”and Ordoliberalism’, do livro The Clash of Economic Ideas, cujo autor é Lawrence H. White.

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.

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