Pesquisa e ciência no Brasil: entre o descaso e o amadorismo

Educação e ciência[1] são indissociáveis. Isso em dois sentidos: os avanços da ciência reformulam os conteúdos ensinados nos anos de escolarização básica, ao mesmo tempo em que um dos objetivos dos anos mais avançados de ensino – o mais importante, dirão muitos – é precisamente fazer avançar a ciência. Melhorar a qualidade da educação em geral implica, portanto, melhorar a produção científica do país.

Em comparações com outros países, não raras vezes salta aos olhos o exemplo da Coreia do Sul, um país que poucas décadas atrás estava em situação deplorável quanto a seu sistema educacional e hoje serve de modelo para o mundo[2]. Dentre os muitos aspectos dignos de nota, muito se tem falado da capacidade do sistema sul-coreano de selecionar seus futuros quadros docentes dentre aqueles com melhor desempenho acadêmico nas universidades. Isso tanto para o ensino básico quanto para o superior – o que implica, também, selecionar cientistas.

Como o Brasil tem lidado com isso? Semana passada, aqui no Terraço Econômico, o colaborador Anderson Bortolotto fez a pergunta: qual o propósito de fazer um mestrado ou doutorado no Brasil?[3] Neste texto, investigo as condições com as quais têm que lidar as pessoas que – independentemente do propósito – decidem tomar o caminho da formação científica na universidade.

O aspecto cultural: Mas você também trabalha?

Três anos atrás, conheci um professor francês que havia se mudado há pouco para o Brasil para trabalhar numa conceituada universidade federal. À época, eu estava nos anos iniciais da graduação em filosofia na USP. Numa conversa num café de São Paulo, ele me disparou a seguinte pergunta: você trabalha muito? Pego de surpresa, sem entender muito bem de onde vinha o questionamento, respondi que dava umas poucas aulas particulares de francês e alemão nas horas vagas – quando não estava na faculdade, nas salas de aula ou na biblioteca, fazendo minha pesquisa. O professor dissipou a confusão inicial, esclarecendo: meus alunos são bastante dedicados, passam muito tempo estudando, em casa ou na biblioteca; e você, também tem que trabalhar muito aqui?

O baque foi tamanho que lembro até hoje dessa anedota. Para um intelectual universitário francês, é natural classificar os anos de estudo e formação superior como trabalho; para nós, brasileiros, não é raro ouvir a pergunta: mas você também trabalha ou só dá aula? Se mal chegamos a considerar o magistério um ofício pleno, que dizer da pesquisa científica?

Daí o aspecto de amadorismo que destaquei no título. Ser pesquisador no Brasil é como ser atleta de qualquer esporte que não o futebol: há um senso de incompletude, de subclasse, de falta de profissionalismo – somos todos atletas de várzea. Afinal, é igualmente comum ouvirmos críticas a essa geração de vagabundos que, em vez de entrar no mercado de trabalho, seguem na universidade, sem gerar nada para a sociedade[4].

Esse pano de fundo cultural é parte importante para explicar por que o Brasil segue, apesar dos avanços econômicos das décadas recentes (ora em derretimento), na segunda linha da pesquisa científica internacional – isso sendo bastante otimista. Desvalorizados por nossos compatriotas, pela população em geral[5], o cientista-intelectual-acadêmico nacional volta seus anseios de reconhecimento para a comunidade científica internacional, onde somos muito bem recebidos, desde que mantenhamos nossa condição coadjuvante e subserviente – nossa posição de vira-latas[6].

O aspecto material: um péssimo investimento

Outra parte importante para explicar o tímido sucesso – ou simplesmente o fracasso – brasileiro no panorama científico mundial é a ausência de incentivos materiais para que potenciais pesquisadores optem pelo caminho da ciência. Para além de discussões sobre crise, investimentos, etc., vejamos um dado simples: quais os rendimentos de pesquisadores em formação?

Há pouca variação entre agências federais, como a CAPES[7] e o CNPq[8], e a maioria das fundações de amparo à pesquisa estaduais (FAPs) – como a Faperj[9], a Fapemig[10] e a Fapergs[11]no tocante ao valor das bolsas concedidas: R$ 1.500,00 para mestrandos e R$ 2.200,00 para doutorandos. A Fapesp oferece bolsas ligeiramente melhores[12], mas nada que mude substancialmente a situação.

Embora não possamos desprezar esses valores face a triste realidade da distribuição de renda nacional[13], é sensato perguntar: quem se sente atraído por essa perspectiva de carreira? Estamos olhando para os primeiros cinco anos da carreira científica, após a conclusão da graduação, num contexto em que normalmente se exige dedicação exclusiva[14]. Comparem essa perspectiva com salarial – pois é disso, no fundo, que se trata – com os prospectos do mercado para profissionais com diploma universitário, boa formação e desempenho acadêmicos e egressos de nossas melhores instituições de ensino superior – pois é esse o perfil buscado pelas agências de financiamento à pesquisa. Para quem vale a pena seguir o caminho da pesquisa científica? Duas respostas.

Em primeiro lugar, para aqueles cujas áreas apresentam perspectivas profissionais economicamente pouco atrativas. Trata-se de áreas essencialmente científicas, cujo grosso da atuação profissional se dá em torno da pesquisa ou da docência[15]. Para esses jovens profissionais, o caminho científico é vantajoso, ou bem porque não há alternativa melhor disponível, ou bem porque vale investir nesses (pelo menos) cinco anos de pouca remuneração para almejar um emprego melhor após o doutorado.

Em segundo lugar, para aqueles provindos de contextos socioeconômicos privilegiados que, podendo contar com o auxílio financeiro da família[16] e/ou tendo crescido num contexto de valorização do trabalho científico-intelectual-acadêmico, conseguem se dar ao luxo – pois é disso que se trata – de atribuir valor extra-econômico a essa escolha de carreira.

Nas áreas onde há ofertas mais atrativas do mercado e onde há presença substancial de jovens provindos de contextos sociais diversos – uma inclusão pela qual o país tem se esforçado, embora tímida e não suficientemente – parece ingênuo acreditar e esperar que selecionemos os quadros mais qualificados para a carreira científica. De certa forma, os paralelos com o magistério são muitos, e as soluções necessárias são, em ambos os casos, homólogas.

É urgente implementar uma política de valorização da carreira científica – tanto material quanto cultural. Como esta última é mais lenta e, em certa medida, depende da primeira, precisamos, antes de mais nada, oferecer uma carreira financeiramente melhor e mais profissionalizada para os pesquisadores e as pesquisadoras em formação neste país.

Caso contrário, persistindo o descaso, permaneceremos praticamente no amadorismo.

Notas

[1] Uso ciência, aqui, em sentido amplo, pré-positivista. Incluo em ciência todo conhecimento que tenha uma parte especulativa e/ou reflexiva. Nessa acepção, química e economia, direito e matemática, filosofia e biologia estão abrigadas pelo termo. [2] Um exemplo divertido, embora exagerado e caricato, pode ser encontrado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=h7-KMf9lpH8 [3] https://terracoeconomico.com.br/qual-o-proposito-de-fazer-um-mestrado-ou-doutorado-no-brasil [4] Por trás desse tipo de comentário, além de um antiintelectualismo rasteiro, há uma noção bastante estreita de finalidade e utilidade nas pesquisas científicas. Tratei deste tema aqui: https://terracoeconomico.com.br/sentidos-de-relevancia-justificativas-para-o-financiamento-de-pesquisas-universitarias [5] Há uma inegável parcela de culpa do establishment acadêmico nesse fenômeno, à qual aludi aqui: https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-sociedade-por-que-ninguem-se-importa [6] https://terracoeconomico.com.br/complexo-de-vira-lata-e-o-lugar-do-brasil-na-divisao-internacional-do-trabalho-intelectual [7] http://www.capes.gov.br/bolsas/valores-de-bolsas [8] http://cnpq.br/no-pais [9] http://www.faperj.br/downloads/formularios/Valores_de_bolsas_auxilio_instalacao.pdf [10] http://www.fapemig.br/visualizacao-de-tabelas-vigentes/ler/310/valores-de-mensalidades-de-bolsas-no-pais [11] http://www.fapergs.rs.gov.br/conteudo_puro_categoria.php?cod_menu=78 [12] http://www.fapesp.br/3162 [13] https://www.nexojornal.com.br/interativo/2016/01/11/O-seu-sal%C3%A1rio-diante-da-realidade-brasileira [14] Sobre essa situação: https://terracoeconomico.com.br/contradicoes-e-paradoxos-da-pos-graduacao-no-brasil [15] Na docência, também, a perspectiva não é animadora. Isso atestava o então ministro da educação, Renato Janine Ribeiro: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/05/brasil-tem-que-aprender-com-coreia-valorizar-o-professor-diz-ministro.html [16] http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2016/07/ciencia-no-brasil-e-bancada-pelos-pais.html

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
Yogh - Especialistas em WordPress