Como forma de manter o estado do Rio de Janeiro no regime de recuperação fiscal, o edital de concessão da Companhia de Águas e Esgotos (CEDAE) foi lançado no fim do ano passado. A modelagem desenvolvida prevê que a empresa siga operando os serviços de tratamento e captação de água, ao passo que outras empresas passarão a operar os serviços de coleta e tratamento de esgoto e distribuição de água.
A empresa, porém, vem sendo alvo de críticas dos usuários. O colega João Barcellos (UFV) tratou de alguns deles nesse texto para o Terraço, mas vou focar em outro episódio recente. No ano passado, moradores do Rio e de outras cidades atendidas pela CEDAE passaram a receber água com coloração e gosto estranhos. A empresa alegou que que isso se devia à presença de geosmina, que nada mais é do que um composto orgânico produzido por cianobactérias. Por mais que a geosmina não seja considerada nociva à saúde, ela é um indicador de que o manancial de onde a CEDAE realiza a captação de água está degradado. A principal fonte de captação de água é o Rio Guandu, que sofre com o lançamento de esgoto sem tratamento por parte de uma série de municípios. Assim sendo, a CEDAE construiu, em meados da década de 1950, uma estação de tratamento (ETA) para tornar a água do Guandu própria ao consumo humano. Entretanto, com o crescente aumento de poluentes no rio, a ETA passou a não dar conta tarefa.
O problema da geosmina aconteceu no verão de 2020 e voltou a se repetir no ano de 2021. Há duas formas de solucionar essa questão. A primeira é investir em técnicas mais avançadas (e custosas) de tratamento de água. Desde a sua criação, a ETA do Guandu passou por uma série de obras para melhorar sua capacidade de tratamento. Contudo, com cada vez mais poluentes sendo jogados na água do rio, não há como esta estação se transformar em uma de tratamento de esgoto, com o objetivo de fornecer água portável à população. Assim sendo, a segunda opção é investir na despoluição do Guandu. Isso se daria tratando o esgoto lançado no rio, o que acabaria por melhorar a qualidade da água que chega à ETA.
A privatização dos serviços de tratamento, coleta de esgoto e distribuição de água poderia fazer com que o objetivo acima fosse alcançado. Por outro lado, é importante analisar se a privatização por si só seria capaz de resolver essa questão. Durante as décadas de 1980 e 1990, privatizações geram debates calorosos entre defensores e opositores desta política. Hoje, mesmo com poucas ondas de privatizações, em relação às décadas passadas, o debate ainda persiste e, infelizmente, emoções se sobrepõem aos dados e boas evidências empíricas.
No exterior, vale mencionar dois trabalhos que tratam dos efeitos da privatização de serviços de saneamento em países da América Latina. Galiani et al. (2005) mostram que a privatização da distribuição de água na Argentina reduziu a mortalidade infantil, principalmente nas regiões mais pobres. Contudo, Granados e Sánchez (2014) mostram que a mortalidade infantil caiu mais devagar em municípios da Colômbia onde o serviço de água foi privatizado. Estes são apenas dois exemplos que mostram como não há um consenso sobre os efeitos da privatização de saneamento.
No Brasil, a questão do “público X privado” foi largamente analisada em uma série de artigos. Mesmo com uma pequena participação no setor, poucas empresas privadas operam serviços ligados ao saneamento no país. Moreira et al. (2005), Mota e Moreira (2006) e Sabbioni (2008) mostram que há pouca diferença em relação à eficiência dos operadores públicos e privados. Logo, o fato de termos um operador público ou privado é pouco relevante. Então, o que poderia melhorar a prestação do serviço?
Tupper e Resende (2004) e Mota e Moreira (2006) chamam a atenção para a questão regulatória, dado que que este é um fator relevante no que se refere à eficiência dos serviços de saneamento. Até a aprovação do marco regulatório do saneamento de 2007, o setor vivia uma grave crise jurídica. Empresas estaduais, que são os maiores players nesse marcado, entravam em disputa (que poderiam parar nos tribunais) com empresas municipais e regionais pelo direito de operar o serviço de água e esgoto dos municípios.
Como mostra Kresch (2020), não havia regras bem estabelecidas e uma grande insegurança jurídica surgia. Logo, as empresas não realizavam investimentos na expansão e manutenção das redes de água e esgoto. O autor conclui que, após a aprovação do marco regulatório de 2007, a insegurança jurídica foi reduzida e isso acabou por elevar os investimentos no setor. Por fim, houve uma redução na mortalidade infantil como consequência da melhoria dos serviços de saneamento básico.
Fato relevante é que a regulação do saneamento básico é feita por agências locais ou estaduais. Se o município possui uma empresa de saneamento (seja ela pública ou privada), uma agência regional ou local pode realizar a regulação. Por outro lado, caso município contrate os serviços de uma empresa estadual de saneamento, como a CEDAE, a operação desta no município será regulada por uma agência estadual. Além de estar em linha com os resultados dos trabalhos anteriores, Barbosa e Brusca (2015) concluem que empresas privadas municipais de saneamento cobram uma tarifa mais alta, quando não são reguladas.
Tal conclusão mostra como as agências reguladoras são relevantes para o bom funcionamento do setor. São elas que farão os contratos entre o município e a operadora serem cumpridos, especialmente no que se refere ao investimento em manutenção e extensão da rede, qualidade do serviço prestado, nível e correção de tarifas, etc. Contudo, como mostram Araújo e Bertussi (2018), as agências reguladoras ainda são francas frente às já estabelecidas empresas de saneamento (principalmente em relação às estaduais). Outro ponto relevante é que estas empresas sofrem grande influência política, o que dificulta ainda mais a rotina regulatória. Evidência nessa linha foi encontrada por Kresch e Schneider (2020). Eles mostram que em municípios onde há uma empresa local de saneamento e o prefeito está alinhado politicamente com o governador, menos investimentos em saneamento são realizados.
Como se dá a regulação da CEDAE? Antes de mais nada é necessário dizer que as empresas estaduais de saneamento de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo começaram a ser reguladas por agências antes de 2010. A CEDAE, contudo, só passou a ser regulada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), em 2015. Não é preciso dizer que a atuação da Agenersa e sua relação com a CEDAE são exemplos dos problemas retratados por Araújo e Bertussi (2018), uma vez que o critério político é mais importante na escolha dos conselheiros que irão compor o alto escalão da agência. Além disso, em 2019, a Agenersa fez pouco mais de 300 fiscalizações, sendo mais da metade delas em instalações da CEDAE e, mesmo assim, nenhum sinal em relação aos problemas citados no início do texto foram encontrados.
Ao que tudo indica, a Agenersa irá realizar a fiscalização das empresas vencedoras das licitações dos serviços de distribuição de água, tratamento e captação de esgoto. Por mais que a entrada de novas firmas no mercado possa ser benéfica, a capacidade da agência reguladora fazer com que os contratos sejam cumpridos é bastante duvidosa. Infelizmente, o foco do debate fica da dicotomia do “público X privado”, mas deixa de lado um elemento fundamental para a geração de bem-estar: a regulação.
Seja público ou privado, um monopólio natural deve ser devidamente regulado. Caso contrário, o bem-estar ficará comprometido. Seja pela cobrança indevida de tarifas, ou pela prestação terrível do serviço, ou pela falta de manutenção e realização de investimentos necessários para a despoluição do rio Guandu, por exemplo. Portanto, a privatização de parte da CEDAE poderia mitigar muitos dos problemas de saneamento enfrentados no estado do Rio de Janeiro. Entretanto, sem os investimentos necessários voltados para aprimorar a capacidade regulatória e autonomia da Agenersa, tais ganhos ficarão muito aquém do esperado.
Mateus Maciel
É formado em economia pela FCE/Uerj e mestrando no IE/UFRJ.