Você no Terraço | por Rafael Barros de Oliveira
O Ensino Médio é a bola da vez, mais do que qualquer outra etapa de instrução escolar. Pensemos apenas no período de um ano, a contar do final de 2015 até agora: a) centenas de escolas ocupadas no estado de São Paulo contra o plano de “reorganização” proposto pelo governador Geraldo Alckmin; b) ascensão meteórica, no plano nacional, da organização Escola Sem Partido, cuja cartilha-manifesto inspirou diversos projetos de lei estadual e um projeto de lei federal; c) gestação de uma proposta de reforma curricular pelo Ministério da Educação já nos primeiros seis meses da administração Temer; d) centenas de escolas ocupadas no estado do Paraná — e em outras unidades da federação — contra o projeto de lei que reforma o currículo do Ensino Médio e, num sentido mais amplo, contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/55.
Inequivocamente, trata-se de um período bastante agitado e cujos desdobramentos têm potencial para influenciar não só a realidade presente, mas também o futuro do Ensino Médio no Brasil. Neste texto, analisarei duas propostas de mudança institucional que: o projeto de lei Escola Sem Partido (ESP) e a Medida Provisória 746, o projeto do Governo Federal para reformar o Ensino Médio.
Escola Sem Partido
Uma “iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”, é como o site do Escola Sem Partido define o movimento — fundado em 2004 e transformado em associação pelo procurador Miguel Nagib, um dos coordenadores do movimento, em 2015. Trata-se de “uma associação informal, independente, sem fins lucrativos e sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica e partidária”, ainda segundo a descrição da página oficial.
Três são as causas principais que orientam a atuação do movimento: 1) “pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas”; 2) “pelo respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes”; 3) “pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Que o movimento tenha evoluído a ponto de ter consolidado uma minuta de projeto de lei, já é o bastante para levá-lo ao centro do debate sobre educação no Brasil. Passemos, então, à análise do conteúdo do Projeto de Lei 193/2016, apresentado ao Senado Federal pelo senador Magno Malta.
O objetivo do PL 193/16 é “a inclusão entre as diretrizes e bases da educação nacional (…) do ‘Programa Escola sem Partido’” (Art. 1º), ou seja, trata-se de uma incorporação na mais importante lei que regulamenta a educação no Brasil. Para além da exigência de autorização expressa dos pais para que escolas confessionais e particulares “cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos” (Art. 4º) veiculem esse conteúdo aos alunos, da determinação de que alunos sejam “informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal” (Art. 6º), que professores, estudantes, pais e responsáveis sejam “informados e educados sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente” (Art. 7º) e a criação de um canal de comunicação para recebimento de denúncias (Art. 8º), o PL se estrutura em torno de duas medidas principais: a inclusão de uma lista de princípios para a educação nacional (Art. 2º) e uma lista de deveres do professor (Art. 5º).
A lista de princípios para a educação nacional vem para complementar, sem alterações do texto vigente, aquela presente no Art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.393/96) — isso significa que a educação brasileira passará a ser regida por meros dezenove (19) princípios elementares, caso o PL 193 seja aprovado. Dois princípios saltam aos olhos no PL: a) “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”; b) “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Quanto ao primeiro, basta lembrar a diferença entre pluralismo e neutralidade: uma coisa é reconhecer a diversidade de concepções existentes e buscar a convivência equilibrada e harmoniosa com o diferente, outra é pretender-se acima de qualquer tomada de posição, como um observador externo da paleta ideológica. O mito da neutralidade costuma servir para esconder uma escolha, tornando-a natural, implícita, isenta ou objetiva; trata-se de uma falácia retórica a serviço de quem quer se escusar de fornecer argumentos e justificativas para sua perspectiva. Quanto ao segundo, é interessante notar um deslocamento na formulação do princípio: na página do ESP, falava-se no “direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, enquanto no PL 193 trata-se do “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”.
Não é mera picuinha: se antes a responsabilidade de prover a educação moral estava colocada nos pais, depois essa responsabilidade passa a ser do Estado, numa interpretação positiva do dever constante na Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (Art. 12, inciso 4). Esta interpretação gera um problema grave de implementação: imaginem uma sala de aula com trinta (30) estudantes, provenientes de contextos sociais e religiosos distintos — digamos, de famílias católicas, protestantes, neopentecostais, agnósticas, judias, ateias, umbandistas, kardecistas, etc. — e reunidos num mesmo espaço de aprendizado; ora, como um único docente poderia contemplar as convicções de cada uma das famílias na mesma e única aula? Parece impraticável, não? Pois me parece que a interpretação mais correta do referido princípio e do dispositivo análogo da CIDH seja negativa: o Estado deve garantir que os jovens não sejam impedidos de receber educação moral e religiosa de acordo com a convicção de sua família — uma extensão do princípio da laicidade estatal.
Quanto aos deveres do professor, conteúdo do famigerado cartaz de no mínimo 90x70cm a ser afixado nas salas de aula, o conjunto parece mirar na doutrinação e acertar na liberdade de consciência e expressão do professor. Se, por um lado, faz sentido impedir os docentes de promover posições pessoais (Art. 5º, inciso I), discriminar estudantes em virtude de convicções pessoais (inciso II), e fazer propaganda político-partidária (inciso III); por outro lado, isso não pode implicar a vedação a emitir opiniões e esclarecer tomadas de posição e preferências pessoais por parte dos professores — na busca interminável pela neutralidade impossível. Ademais, exigir que o professor impeça “que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula” (inciso VI) é, no mínimo, contraditório: ao mesmo tempo em que mutila o professor em sua capacidade expositiva, o PL 193 exige que ele seja um policial em sala de aula, zelando pela neutralidade ideológica a serviço da família.
Os docentes, impedidos de se expressar e opinar, pasteurizados segundo um padrão inexistente de neutralidade e feitos reféns dos alunos e pais — sempre a uma queixa, a uma reclamação e a uma denúncia da demissão — devem ainda agir como paladinos de seus próprios grilhões, preservando a assepsia do ambiente escolar. Não é de se admirar que o projeto tenha atraído tantas críticas. Vejamos se outro movimento de reforma do ensino se sai melhor.
Reforma Provisória
Em setembro deste ano, o Governo Federal editou a Medida Provisória 746/16, que institui a política de fomento à implementação de escolas de Ensino Médio em tempo integral e altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96).
As alterações introduzidas pela MP seguem em duas direções: em primeiro lugar, determina-se a implementação progressiva do turno integral no Ensino Médio, com o aumento da carga horária para 1.400 (mil e quatrocentas) horas; em segundo lugar, a flexibilização do currículo escolar, que passaria a ser organizado em torno de um núcleo mais enxuto de disciplinas obrigatórias, tornando as demais facultativas.
A implementação de turno integral parece, à primeira vista, uma medida acertada e benéfica, afinal seria possível dedicar mais tempo ao estudo dos diversos componentes programáticos previstos, o que possibilitaria maior aprofundamento destes e, consequentemente, um ensino de melhor qualidade. No entanto, o argumento apresenta — no mínimo — dois problemas graves: por um lado, exclui os alunos que se veem obrigados a trabalhar durante os anos do colegial, ampliando ainda mais as distorções quanto à oferta de oportunidades entre as diversas classes sociais; por outro lado, reforça uma concepção pedagógica antiquada, que concebe a escola — mais especificamente a sala de aula — como o único ambiente de aprendizado digno de consideração, reduzindo o tempo que os jovens poderiam dedicar, se quiserem, a outros meios de aquisição de conhecimento (cursos livres, online, palestras, oficinas, conservatórios, etc.) e, paradoxalmente, restringindo as possibilidades de atuação docente (menos tempo para lições de casa, trabalhos, leituras extra-classe, etc.).
A proposta de flexibilização do currículo atraiu ainda mais controvérsias. Assim como a ideia analisada acima, trata-se de uma medida que, à primeira vista, parece positiva: uma das críticas mais comuns ao Ensino Médio atual — partilhada por docentes, estudantes e seus responsáveis — é a de que o currículo apresenta um número excessivo de disciplinas, o que leva tanto a mais um paradoxo: a sobrecarga pela quantidade de matérias e a superficialidade incontornável da abordagem dos conteúdos no tempo escasso. Em princípio, portanto, fixar como disciplinas obrigatórias apenas o ensino de língua portuguesa e matemática nos três anos de duração seria uma mudança bem-vinda. No entanto, o problema está na forma como tal flexibilização seria implementada: a nova redação do Art. 36, §1º da LDB proposta pela MP 746 determina que “Os sistemas de ensino poderão compor os seus currículos com base em mais de uma área prevista nos incisos de I a V do caput”; ou seja, fica a critério da administração local determinar quantas e quais áreas de concentração serão oferecidas entre linguagem, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional — respeitando a obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa e matemática nos três anos do currículo (Art. 36, §9º).
Pois bem, o que se apresenta como o paraíso para os estudantes, que poderiam acessar a escola em tempo integral e optar por uma — ou mais (Art. 36, §10º) — área de concentração, se revela como uma sentença de exclusão e condenação à contingência e arbítrio do Estado. Sem garantir a permanência dos estudantes de baixa renda na escola, sem lhes proporcionar meios de estudar em tempo integral, essa medida resultará na segregação e na ampliação das desigualdades de oportunidade educacional em nosso país. Ademais, sem obrigar que os sistemas locais forneçam todas as áreas de concentração previstas, de modo que os estudantes possam, de fato, escolher a que lhes atrai mais, o que se verá será o direcionamento forçado para certas formações, segundo a liberalidade do sistema local em oferecê-las — alguém suspeita qual das cinco seria privilegiada?
Uma encruzilhada decisiva
Se é verdade que os últimos meses têm sido de ebulição para estudantes, professores, pesquisadores e observadores do Ensino Médio, é também verdade que se trata de um momento arriscado. Que haja falhas estruturais na educação pública brasileira, das quais o Ensino Médio é a principal vitrine, quanto a isso não parece haver divergência — e os dados do Programme for International Student Assessment (Pisa) não deixam margem para grandes questionamentos. No entanto, há muito o que se debater quanto às soluções e aos rumos a serem tomados.
Do ponto de vista do conteúdo, as propostas aqui examinadas parecem embebidas, por um lado, da rejeição à política que tomou conta da esfera pública nacional nos últimos três anos e, por outro, da consolidação da situação atual de desigualdade. Do ponto de vista da forma, é importante ressaltar que ambas as propostas apresentam distorções do ponto de vista democrático: o PL 193 dá excessivo peso a um pequeno grupo organizado de civis (o movimento ESP) e a MP 746 exclui a sociedade civil da roda de discussão, implementando uma reforma de gabinete a toque de caixa.
Os rumos da educação nacional dependem da capacidade de mobilização e engajamento da população para garantir sua participação no debate. Caso contrário, serão anos de caminhada íngreme rumo à reconstrução do ensino brasileiro.
Rafael Barros de Oliveira Formado em Direito e em Filosofia pela USP. Mestrando em Filosofia. Foi pesquisador assistente na Direito GV e pesquisador visitante na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt Originalmente publicado em: https://medium.com/@barros_rb/reforma-sem-partido-perspectivas-para-o-ensino-m%C3%A9dio-9293f9c11276#.umsi89684