Sinais vindos da França: Esquerda, direita e crise no mundo globalizado

O interessante na história da modernidade (e com isso me refiro ao período que vai do século XV ao XVIII) é que se trata de uma época de transição, de declínio de uma antiga sociedade e surgimento de uma nova. Autores tão díspares quanto Tocqueville, Marx e Weber concordariam com essa ideia, porém com enfoques diferentes. Tocqueville via nesse período a transição da sociedade aristocrática para a democrática, e sua consequente centralização de poder, Marx a entendia como a transição do feudalismo para o capitalismo, e Weber a substituição da dominação tradicional pela racional. Todos os três estavam certos. Nesses quatro séculos, a sociedade medieval, aristocrática-feudal-tradicional gradualmente cedeu lugar à sociedade democrática-capitalista-racional do século XIX. Esse período também pode ser entendido como o de formação e afirmação do indivíduo frente a uma organização social orgânica.

Algo similar ocorre durante a formação da pós-modernidade, entre as manifestações de 1968 e a queda da URSS em 1991. Nesse período, também temos uma sociedade anterior e uma posterior, quase como tipos ideais,  a percepção da decadência de certas instituições e práticas e o surgimento de outras. A sociedade anterior, no caso, é a formada no pós-guerra, baseada no keynesianismo, no compromisso de classes, no estado de bem-estar social, no modelo fordista, no mundo bipolar e num modelo de família nuclear patriarcal bem definido. Já a sociedade posterior é aquela consolidada nos anos 90, neoliberal, globalizada, com bandeiras identitárias tomando o espaço das bandeiras de classe, com inserção das mulheres no mercado de trabalho e novos modelos de família, multipolar e informatizada.

É nesse contexto que a divisão da política entre esquerda e direita passa a ser mais fortemente contestada. As ideias de esquerda e direita políticas fariam sentido no velho mundo, classista e bipolarizado, mas não cabiam mais na nova ordem que surgia. Uma das principais figuras a se posicionar contra essa ideia foi Norberto Bobbio. De todos os seus argumentos, um dos mais convincentes é o mais simples. As pessoas ainda se guiavam por esses termos, “esquerda” e “direita”. As eleições, no final das contas, terminavam com a velha disputa entre uma determinada esquerda contra uma determinada direita.

A grande polarização anterior, que parecia ser base para tal divisão, havia desaparecido. Não existia mais uma disputa clara entre um projeto capitalista norte-americano e um socialista soviético, mas essa divisão não se dava apenas nesse âmbito. Dentro dos próprios países capitalistas, havia uma clássica disputa entre a centro-esquerda e a centro-direita, fossem trabalhistas e conservadores no Reino Unido, sociais-democratas e democratas-cristãos na Alemanha ou mesmo petebistas e udenistas no Brasil. Essas divisões continuavam no debate político, e os termos “esquerda” e “direita” ainda eram usados como referências, tanto pelos próprios partidos, como pelas mídias e pelos analistas políticos.

Tudo bem que os partidos da centro-esquerda dos anos 90 eram, via de regra, bem mais economicamente liberais do que haviam sido no pós-guerra (e, por vezes, mais liberais que os próprios partidos de direita do período), mas não é só porque o centro havia migrado para a direita que não existia algo à esquerda e à direita desse centro. O deslumbre com as grandes mudanças da nova ordem havia se equivocado. A velha divisão partidária do pós-guerra, com seus velhos rótulos, persistia, mesmo que o conteúdo desses rótulos diferisse bastante do que fora nas décadas anteriores. O próprio Anthony Giddens, que em 1994 escreveu Para Além da Esquerda e da Direita, poucos anos depois já identificava suas ideias muito mais com uma esquerda renovada do que com uma não-esquerda. É possível que hoje estejamos finalmente testemunhando o declínio dessa divisão clássica. O resultado das eleições francesas é sintomático não apenas por Le Pen, mas pelo próprio Macron. A última vez que a Frente Nacional conseguiu ir para o segundo turno foi contra o Chirac em 2002, pelo RPR, partido gaullista da tradicional centro-direita francesa. É interessante que quem conseguiu ir para o segundo turno dessa vez não foi nem a centro-esquerda, nem a centro-direita, mas o centro. Foi o social liberalismo, que é praticamente hegemônico em nossos dias, mas que eleitoralmente raramente consegue ser algo maior que um terceiro partido.

Caso procure pelas práticas e pela mentalidade política de nossa época nos últimos trinta anos, são nos partidos da ALDE (Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa, formado por 49 partidos liberais e centristas de todo continente) que irá encontrar: globalização, valorização de uniões e tratados internacionais, cosmopolitismo e livre imigração. Caso queira encontrar nomes de primeiros-ministros a frente de governos, é melhor procurar no PPE (Partido Popular Europeu, associado à centro-direita) ou no PSE (Partido do Socialismo Europeu, tradicionalmente classificado como de esquerda). O que acontece é que, com a ascensão da terceira via entre os partidos de esquerda, que na prática aceita o “esqueleto” da globalização e do liberalismo, e a aceitação de um lado “social” entre os partidos de direita, surgiu uma espécie de consenso social liberal, em que os grandes partidos diferem, mas não radicalmente.

Enquanto esse consenso não tinha um adversário forte (as críticas ficavam relegadas a uma esquerda radical que tinha mais influência nas mídias e nas universidades do que nas urnas) a divisão persistia, da mesma forma que ela persistiu no período do consenso fordista-keynesiano. Com o fortalecimento da direita populista, que ataca esse consenso em praticamente todos os seus aspectos, as antigas diferenças parecem menores. Curiosamente, a França não verá uma disputa entre um socialista e um conservador, mas entre um liberal e uma nacionalista. Ao contrário do que previam os adversários de Bobbio nos anos 1990, não foi o fortalecimento do moderno modelo de globalização que enfraqueceu a velha divisão entre direita e esquerda, mas justamente a sua crise.

Victor Yamasaki – Graduando em História na UFF
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