Terraço Debate | por Ramón García Fernández*, especial para o Terraço Econômico
Já foi dito em diversas ocasiões, por partidários de ambos os candidatos, que as eleições do próximo dia 26 entre a Presidenta Dilma Rousseff e seu concorrente, o senador Aécio Neves, representam uma escolha entre dois projetos diferentes de como organizar o país. Eu estou de acordo com essa afirmação, mas antes de começar a discutir as diferenças entre elas, vou lembrar algumas questões gerais sobre a situação do Brasil desde 1995.
A eleição de 1994 marcou o início de uma polarização entre o PT e o PSDB, dois partidos sérios, estruturados a nível nacional, com posições definidas, com quadros técnicos e lideranças consolidadas. Essa polarização vem se mantendo desde esse momento. Ficaram para trás, felizmente, a péssima experiência de um Jânio Quadros ou de um Fernando Collor de Mello, aventureiros que, sem partido, sem estrutura, sem noção do que fazer, conseguiram com o apoio das elites, entusiasmar especialmente as classes médias, com campanhas centradas em vagas atitudes moralistas.
É importante destacar, nesse sentido, que a disputa PT x PSDB elevou os padrões de moralidade da política brasileira. Obviamente, no calor da campanha se falam muitas besteiras, se usam simplificações e se procura encontrar argumentos de impacto. Num país envenenado pela “denuncite” que a grande imprensa promoveu nos últimos anos (também, mas em muito menor medida, nos governos de FHC), o grande argumento de disputa política têm sido os casos de corrupção de todos os partidos. Não ignoro a influência nas eleições do poder econômico concentrado, nem descarto algumas atitudes individuais predatórias, ao mesmo tempo em que tenho claro que o conhecimento do governo permite algumas portas giratórias entre o estado e o mercado. Todavia, é fácil para qualquer observador sensato verificar que as enormes fortunas feitas do dia para a noite por pessoas sem qualquer fonte de renda exceto a política são, felizmente, lembranças do passado. Arrisco a afirmar que quem não vê isso não conhece o Brasil. Reduzir a escolha do dia 26 a uma dramática opção entre a “Roubalheria petralha” e a “Privataria Tucana”é fazer um desserviço à inteligência dos cidadãos, e em termos gerais é uma manifestação de burrice, inata ou induzida pelo ódio político, que pode carcomer os neurônios até de pessoas inteligentes. Eu gostaria que a corrupção acabasse, é claro, mas centrar a campanha eleitoral nisso é muito ruim para a democracia, porque nos afasta das questões verdadeiramente relevantes.
Uma vez feito o trabalho, chato porém necessário, de eliminar os argumentos que obscurecem a discussão, vamos olhar para as características de ambos os projetos, e eu vou argumentar por que entendo que o projeto representado hoje pela presidenta Dilma é o que permite ter maiores esperanças de um Brasil mais justo e próspero. Vou fazer mais uma ressalva: tentarei evitar ao máximo o uso de estatísticas. Dados diversos têm sido usados às pencas nesta eleição por ambos os lados, e confio em que os leitores saberão encontrar os dados mais convenientes às suas preferências no florescente “mercado de estatísticas” que esta eleição tem promovido. Basta você escolher para seu defendido o período mais adequado, para o adversário o menos adequado, argumentar (ou nem isso) sobre o motivo do recorte, ou encontrar um “grupo de controle” conveniente quando os dados inicialmente não o favorecem, e “Shazam!”, você passa a ter hard-data do seu lado. Vou preferir argumentar sobre as visões que movem ambas as candidaturas.
Uma questão importante, que permite resumir as perspectivas desses dois projetos, é o de como denominá-los. Toda boa classificação deve ser tal que o classificado se identifique com ela, e quanto ao projeto que hoje defendem o PT e a presidenta Dilma, acho que a rotulá-lo como “projeto neo-desenvolvimentista” (PND) não criaria polêmicas. A denominação do projeto defendido pelo PSDB do senador Aécio é mais difícil de fazer: o termo “neoliberal” tem sido considerado ofensivo por alguns, o “tucano” é redundante, o de “pró-mercado” deixa implícito que os adversários são inimigos do mercado. Vou chamá-lo de “projeto integracionista” (PI) pela perspectiva, repetida desde os trabalhos clássicos do ex-presidente FHC, de que o desenvolvimento do Brasil deve ocorrer através de uma integração com as forças que lideram o capitalismo ao nível internacional.
Para mim, a maior divergência entre ambos os projetos está no papel que o estado deve assumir na economia. O PND supõe que o estado deve se preocupar com os investimentos, estimulando setores vistos como essenciais e, no limite, agindo diretamente. De alguma maneira, o PAC é expressão dessa visão, mas também é uma peça essencial nele o maior papel do BNDES, oferecendo taxas de juros subsidiadas para projetos relevantes. Isso se complementa com uma política industrial ativa, que inclui políticas de defesa de conteúdo nacional. Talvez o ressurgimento da indústria naval brasileira seja o melhor exemplo disso. Como complemento dessa visão do papel do Estado, não seria justo deixar de falar da organização da Copa, evidência da capacidade de intervenção do setor público, cujo sucesso em termos gerais foi uma surpresa até para os próprios partidários do PND, envolvido que estava o país pelo pessimismo que vinha sendo sistematicamente criado (alguém esqueceu o “Imagina na Copa!”?).
O PI supõe que “o mercado” (leia-se, o empresariado e os especuladores do mercado financeiro) pode e deve orientar o processo de crescimento econômico. A suposição implícita é que há investidores ansiosos de aproveitar as oportunidades de negócios, e que seu acionar promoveria um crescimento cujos benefícios derramariam para o conjunto da sociedade. Mas por que esse bravo empresariado não estaria fazendo isso já? Segundo essa versão, o empresariado estaria inibido pelo excesso de “intervencionismo” do governo. Esse intervencionismo essencialmente se manifestaria na mencionada ação do BNDES, e por “quebras de contratos”, notadamente na concessão de alguns serviços públicos. Confesso que, sem ter sido nunca empresário, para mim essa argumentação não faz muito sentido. Ou seja, se eu como empresário quisesse ampliar minha fábrica de carros, remédios ou batatinhas, o fato de que o governo me permita comprar máquinas a juros subsidiados (num país cuja taxa de juros para toda linha comercial é muito maior do que a de qualquer outro) inibiria meu investimento? Ou acaso algum empresário acreditará que dado que o governo renegociou os contratos de eletricidade, a seguir fixará um preço máximo para os sabonetes? Se somarmos a isso o recorde de investimentos estrangeiros diretos verificado no governo da presidenta Dilma, esse ceticismo do “mercado” parece bastante questionável, e a motivação parece muito mais política, como os movimentos da bolsa nos últimos meses o explicitam.
Para poder desempenhar o seu papel na economia, o estado deve ter um corpo técnico competente. Ninguém questiona que o PND defende isso. O PI também o faz, mas no meu entender essa afirmação é contraditória com outras partes de sua proposta, a de aumento do superávit primário, que seria uma perna do tripé macroeconômico descuidada pelo atual governo. Em geral, e fora da fase de campanha na qual todo cuidado com medidas impopulares é pouco, os economistas vinculados ao PI têm defendido consistentemente ao longo dos últimos anos a redução da carga tributária. Reduzir a carga e aumentar o superávit implicaria em reduzir fortemente os gastos do setor público. Como o candidato do PI também promete aumentar o investimento do setor público, e manter os gastos sociais (mesmo que muitos dos economistas que o apoiam os tenham criticado ao longo dos últimos anos), um observador cético se perguntaria o que resta de espaço de manobras para fazer o ajuste. Dados não questionados por ninguém mostram a queda dos gastos em pessoal e em consumo do governo como proporção do PIB ao longo dos últimos anos. Onde seria feito então o ajuste, alem do tradicional corte do cafezinho? Quão mágico pode ser qualquer “choque de gestão” para conseguir que os números fechem? Fará o milagre tirar o nome de “ministérios” a modestas secretarias, assim denominadas para lhes conferir maior peso político? E como fortalecer a competência do funcionalismo público no meio disso num período de austeridade? Neste campo, as propostas do PND são mais acreditáveis, porque simplesmente propõem mais do mesmo que vem sendo feito.
Uma questão que está necessariamente vinculada com esta é a atitude em relação e ao emprego e à inflação. Para o candidato do PI e todos seus economistas, a inflação no teto da meta é inadmissível, e no calor da campanha é frequente ouvir que ela está “fora de controle”. A solução estaria então no aumento da taxa de juros. Confesso que sempre me espanta a liberalidade destes economistas para o gasto com juros, especialmente quando se contrasta isso com sua austeridade quase franciscana ao falar de qualquer outro gasto público; mas também me preocupa o efeito que esse aumento pode ter no emprego. Acho que a experiência brasileira recente mostra que se pode ter consistentemente um aumento do emprego que vá além do curto prazo; e se o custo disso for um ligeiro aumento da inflação (leva-la do centro ao teto da meta), acho que esse é um preço mais do que razoável a ser pago. Fora isso, dizer que um aumento de 2% na inflação é “descontrole” e “um insuportável sacrifício para os mais pobres” pode ser sustentado em uma campanha eleitoral, mas afirmar isso numa conversa de bar após as eleições viraria motivo de piada. Quanto à escolha do PND, ela está explícita: nível de emprego recorde, e inflação moderada, mantida mais o menos no mesmo patamar nos últimos dois governos.
Por sua vez, e embora já seja um lugar comum, partidários e até alguns adversários do PND destacam seu melhor desempenho em duas áreas cruciais: as sociais e as educacionais. Quanto à área social, a redução da pobreza e da miséria, o aumento do consumo das “classes médias” (a la Marcelo Neri) ou, melhor, dos “trabalhadores brasileiros” (a la Jessé Souza), os “aeroportos que parecem rodoviárias” e questões semelhantes têm sido destacadas por inúmeros observadores. Parte desse sucesso sem dúvida decorre de programas como o Bolsa Família (cuja paternidade é objeto de reivindicação pelo PI, que teima em esquecer as escalas envolvidas), os quais são timidamente elogiados pelo PI, mas cuja atitude para com estas políticas é sempre a de enfatizar mais as condicionalidades e as “portas de saída” do que os programas em si. Outra parte desse sucesso, que também tem sido consensualmente reconhecida, foi a concessão de aumentos reais do salário mínimo, política que foi criticada duramente pelos economistas do PI quando foi implantada. Por sua vez, a sensibilidade social demonstrada através dos diversos planos que se preocuparam em levar água, luz, internet, etc., a regiões que antes não contavam com esses recursos certamente explica muita da simpatia pelos candidatos do PND em algumas das regiões mais pobres do Brasil.
Finalmente, na educação, certamente durante o governo do presidente FHC completou-se o movimento de universalização da educação primária. Todavia, o desinteresse desse governo pelo ensino técnico foi evidente, mais quando contrastado com a ênfase dada a isto pelos presidentes Lula e Dilma. E na política universitária há claramente dois modelos em jogo. De um lado, para o PI, como manifestado reiteradamente por seus economistas, a educação universitária é vista como um privilégio e uma escolha: quem a quer deve pagar, e eventualmente pessoas pobres podem ter acesso a ela através de crédito educativo ou bolsas. A manutenção de um sistema grande de universidades públicas é entendida como “pulverização de recursos”, os que deveriam ficar concentrados em poucas instituições de pesquisa, e as restantes deveriam se concentrar no ensino. Nesse sentido, o contraste com os governos do PND é evidente: as universidades federais aumentaram em numero, e mais ainda, multiplicaram seus campi, interiorizando o ensino superior de qualidade (claro, nem todos os campi são perfeitos, nem todos os professores estão entre os melhores do país, mas para o que havia em muitas dessas regiões o avanço quantitativo e qualitativo é exponencial).
Certamente, há muitos mais planos nos quais esse contraste ente ambos os projetos pode se feito (política externa, habitação, mobilidade urbana, etc.). Limitações de espaço exigem que pare por aqui. Em resumo, entendo que o PND mostra uma sensibilidade social muito maior que o PI. Quanto aos aspectos econômicos, embora os resultados recentes do governo da Dilma não sejam alentadores, entendo que as propostas do senador Aécio oscilam entre a inconsistência demagógica de “manter tudo o bom e mudar o ruim”, e as mudanças austericidas promovidas pelas obsessões com os déficits e com a inflação. Lembremos que estas obsessões têm nos levado a uma crise internacional que curiosamente muitos fazem de conta que não existe.
Por isso, recomendo o voto a favor da reeleição da presidenta Dilma, a candidata que representa hoje o projeto neo-desenvolvimentista, o que tanto tem mudado para melhor a qualidade de vida da maioria da população brasileira.
*Ramon Garcia Fernandez Doutor em Economia pela USP Pós Doutorado pela University of Massachusetts – Amherst Coordenador do Bacharelado em Ciências Econômicas da UFABC