O debate sobre a condução da política monetária é um que vive sendo revivido no Brasil, particularmente nos últimos anos. Cada lado do debate advoga uma solução para o que analisam como desequilíbrios macroeconômicos incontornáveis. Dentro do caos dessa discussão temos naturalmente propostas sobre qual deveria ser a regra fundamental de condução da política monetária brasileira.
Em geral, a proposta mais usual de regra monetária defendida pelos economistas brasileiros é a regra de metas de inflação baseadas na Regra de Taylor. Segundo essa proposta a autoridade monetária deveria estipular uma banda inflacionária (como limites inferiores e superiores) que de meta para condução da política monetária do Banco Central. O objetivo seria trazer o indicador base do nível de preços da economia para mais perto dessa meta por meio dos instrumentos disponíveis ao Banco central; sobretudo o uso da taxa básica de juros do mercado de dívida (SELIC).
Contudo, seriam outras regras viáveis?
Na última década, especialmente no debate econômico americano, tem se popularizado a ideia de que a política monetária deveria ser conduzida por meio de uma regra de PIB nominal; o chamado NGDP Targeting. Varias pessoas significativas dentro do debate de política monetária nos Estados Unidos, incluindo o então presidente do Federal Reserve de Chicago, Charles Evans, e o economista Paul Kurgman, defendem que essa política é a mais adequada para a tomada de decisão do Federal Reserve Board e a que mais se alinha com as características da economia americana.
Mas seria essa política viável para uma economia em desenvolvimento como o Brasil?
O presente artigo busca investigar justamente a viabilidade de tal política ao sul do Equador. Minha curiosidade para explorar tal caso veio de um paper muito interessante de Bhandari e Frankel onde os autores defendem que uma regra de política monetária como o NGDP Targeting é mais adequada para economias em desenvolvimento do que uma regra de metas de inflação. Segundo o argumento deles, tal regra teria duas vantagens principais:
- Ela consegue lidar melhor com os choques externos e de oferta que são característicos de economias em desenvolvimento; sobretudo aquelas dependentes de pautas de exportação voláteis como commodities;
- Devido conseguir lidar com esses choques, a regra é mais estável para esses países e se torna mais fácil de ser seguida pela autoridade monetária. Como resultado, é gerado uma regra mais previsível para os agentes do mercado.
Mas será que ela é realmente uma boa escolha de regra para substituir o atual regime de metas de inflação no Brasil?
I – Uma Breve Introdução à Regra de PIB Nominal:
O problema básico de uma regra de política monetária é decidir que variável será utilizada como heurística para gerar um equilíbrio monetário dentro de uma economia. Friedman pontuava que a autoridade deveria se guiar por magnitudes que ela fosse capaz de controlar. Essas magnitudes eram: nível de desemprego, taxa de câmbio, taxa natural de juros, nível de preços e agregados monetários.
A Regra de Taylor busca guiar a política monetária por meio da magnitude do nível de preços, do nível de emprego da economia e da taxa natural de juros. Em sua formulação mais simples o nível da taxa básica de juros recomendado pela Regra de Taylor pode ser estimado por:
r = p + β(y-yϴ) + β(p – pe) + re
Onde r é a taxa básica de juros da economia (no nosso caso a Selic e no caso americano o Federal Fund Rate), p é a taxa de inflação para o período, (y-yϴ) é o desvio do PIB efetivo em relação ao PIB potencial ou PIB da economia em pleno emprego, (p – pe) é o desvio da inflação em relação à meta, re é a taxa de juros neutra da economia e as constantes β são elasticidades assumidas como sendo 0.5; indicando respostas de juros positivas tanto a desvios de inflação em relação à meta como a desvios do PIB em relação ao PIB potencial.
Contudo, apesar de seu sucesso, tal regra possui certos problemas. Primeiramente, como Friedman já apontava, a política monetária tem um efeito apenas indireto sobre o nível de preços; de forma que seria difícil a estimação do impacto da política monetária sobre um índice de preços. Isso se dá sobretudo devido o fato de que variações no nível de preços podem ser tanto respostas a pressões de demanda, como é usualmente assumido na regra de Taylor, como efeitos de choques de oferta. Tais diferenças tem implicações para a forma e a eficiência da política monetária. Christensen, por exemplo, demonstra, por meio de uma extensão do modelo Barro-Gordon, que choques reais podem afetar a forma da política monetária ótima em um dado cenário ao introduzir pressões não-nominais nos preços.
Claro, os modelos de metas de inflação conseguem em geral contornar isso ao afirmar que uma mudança na taxa básica de juros terá efeito sobre as expectativas dos agentes e, como consequência, ocorrerá uma modificação de variáveis reais em curto prazo que compensará os choques reais. Todavia, como demonstram Bhandari e Frankel, tal escolha tem como efeito um aumento da volatilidade do PIB nominal da economia.
O segundo problema é que modelos baseados na Regra de Taylor são dependentes de variáveis não-observacionais como a diferença entre PIB efetivo e potencial e a taxa de juros neutra. Como coloquei em artigo anterior, a estimação de tais variáveis é um processo controverso e que acaba gerando divergências sobre quais as estimativas menos erradas para basear a política monetária.
Devido a essas limitações a Regra de Taylor tem sido posta em dúvida a um tempo. Scott Sumner pontua que o período posterior à Crise de 2008 colocou dúvidas sobre a viabilidade de uma política monetária baseada em regras de metas de inflação quando essas se mostraram inadequadas para enfrentar o cenário da Grande Recessão e terem induzido uma elevação injustificada da Federal Fund Rate no meio da crise. Em cenário mais recente, Peter Ireland observa que medições de PIB nominal poderiam ter ajudado o Federal Reserve a atingir seus objetivos com mais eficácia ao determinar com melhor precisão o nível adequado do ajuste da política monetária no anterior à pandemia de Covid-19.
A vantagem de uma regra de PIB nominal é que ela não necessita da estimação da diferença entre PIB efetivo e PIB potencial, pois tal pode ser substituído por uma estimação simples da diferença entre PIB nominal efetivo e neutro. Uma vez que se trata de uma junção contábil entre PIB real e um índice nominal de inflação, o PIB nominal consegue capturar, em uma única medida, tanto o objetivo de manutenção da atividade como a estabilidade dos preços. Isso é desejável do ponto de vista da política monetária em modelos novo-keynesianos, pois é racional nesses modelos que a autoridade monetária tenha objetivos tanto de controlar a inflação como também o nível de atividade da economia real dado que choques nominais podem ter consequências de curto prazo na economia real, sobretudo devido rigidez de custos de menu e contratos de trabalho.
O curioso é que o mesmo sobre o PIB nominal é válido para modelos monetaristas. Os modelos novo-keynesianos e monetarista convergem com relação à importância de uma variável: a demanda real por moeda. Da mesma forma que a diferença de PIB efetivo e potencial, a demanda real por moeda é determinada de forma endógena pelos “fundamentos” da economia de um país. Todavia, se olharmos a Equação de Trocas de Fisher, que nos diz que:
MV = PY
Notaremos que o PIB nominal (PY) é equivalente à oferta de moeda (M) automaticamente ajustada pela velocidade de circulação (V), de forma que um nível estável de crescimento do PIB nominal equivale a compensações das mudanças na velocidade de circulação da moeda com mudanças 1:1 na oferta de moeda. Dessa forma, perseguir uma meta de PIB nominal estável teria o mesmo efeito teórico de perseguir uma regra monetarista de agregados monetários, porém sem as dificuldades de escolher qual o agregado monetário mais adequado e sem o pressuposto de uma velocidade de circulação constante da moeda.
Agora que explicamos melhor o contexto da regra de PIB nominal, vamos ver o caso dela para o Brasil.
II – Estimação do PIB Nominal Neutro e NGDP Targeting para o Brasil:
Para estimar uma regra de PIB nominal para o Brasil primeiramente é necessário realizar a estimação do nível neutro de PIB nominal da economia. A metodologia que adotarei aqui é a desenvolvida por David Beckworth (2020).
Primeiramente, uma vez que o nível neutro busca capturar as expectativas dos agentes para o crescimento futuro do PIB nominal, é necessário que seja feita uma coleta das expectativas dos agentes econômicos com relação ao PIB nominal. Beckworth faz isso coletando as expectativas dos agentes econômicos para o PIB nominal em período t informadas no Survey of Economic Forecasters (SEF) do Federal Reserve da Philadelphia em um período de t-20 trimestres. Com isso é possível gerar expectativas de longo prazo para o PIB em momento t.
Para o caso brasileiro eu utilizei as expectativas de PIB nominal coletadas pelo Banco Central do Brasil (BCB) por meio do Relatório Focus e disponíveis no Sistema de Expectativas de Mercado. Os dados do Focus, contudo, possuem uma duas limitação em comparação com os dados do SEF:
- As expectativas só abrangem um período de 5 trimestres e só representam expectativas de agentes do mercado financeiro;
- Enquanto o SEF possui dados de expectativas desde 1992, o Focus só começou a computar expectativas superiores ao período de um ano a partir de 2012.
Devido isso, enquanto as estimativas de Beckworth capturam todo o período de 1992 até 2022, as minhas só conseguem capturar o período de 2012 a 2022.
Após reunir as expectativas de t-5 trimestres para o PIB nominal em momento t, eu converti tais expectativas de níveis percentuais para níveis de real (moeda) pegando o nível corrente do PIB nominal em momento t-6 e aplicando ele nas expectativas de PIB nominal do período t-5 até t-1. Esse processo irá gerar uma trilha de 5 trimestres de PIB nominal esperado em termos de reais. Tais trilhas são geradas para cada trimestre começando em 2012 (Q1 2012) até o último trimestre de 2022 (Q4 2022).
Em seguida é estimada uma expectativa média do PIB nominal para dado trimestre futuro utilizando todas as expectativas geradas no período t-5. Esse processo é repetido para todos os trimestres do período selecionado até que seja gerado uma série temporal de Q1 2012 até Q4 2022. Essa série temporal é o PIB nominal neutro e pode ser expresso por:
PIB Nominalϴ= ∑5i=1 PIB Nominalt-1Expectativa (t) / 5
Realizando esse exercício para a economia brasileira com os dados do Focus conseguimos estimar um nível de PIB nominal neutro que é mostrado abaixo juntamente com o PIB efetivo. Os dados do PIB foram coletados do IBGE e ambas as séries foram dessazonalizadas por meio do método X-13 Arima.
A lógica para analisar essa série é que se o PIB nominal efetivo (ou seja, o PIB que efetivamente tivemos em determinado ano) estiver acima do nível neutro então os agentes fizeram opções de consumo e investimentos em momento t-5 maiores do que a economia real poderia efetivamente suportar, gerando assim pressões inflacionárias. Caso ele esteja abaixo, então, pela mesma lógica, a economia tem pressões deflacionárias. Dessa forma, podemos usar as diferenças entre PIB nominal efetivo e neutro como uma espécie de “termômetro” da demanda agregada para saber se a economia tem ou não pressões inflacionárias.
Realizando uma computação das diferenças percentuais entre os dois níveis temos a seguinte medida:
Em ambos os gráficos estão destacadas os períodos de 2015-2016 e 2020-2021 onde a economia brasileira passou a apresentar quadros maiores de inflação medidos pelo índice IPCA do IBGE. A diferença é consistente com a avaliação de que a economia brasileira apresenta uma tendência de pressões inflacionárias, porém chama a atenção que períodos com inflações mais ou menos semelhantes apresentem níveis de diferença díspares. Também chama a atenção a redução aparentemente inexplicável entre o primeiro e o segundo trimestres de 2021.
Por fim, para estimar uma regra de PIB nominal, uma versão modificada da Regra de Taylor é utilizada onde a diferença de PIB potencial e efetivo é substituída pela diferença entre PIB nominal efetivo e neutro e onde o nível de preços é desconsiderado. Para a estimativa da taxa de juros neutra utilizei a metodologia de estimação simples sugerida por Ailton Braga com base nos juros dos títulos públicos de 5 anos. Na figura abaixo temos como ficaria a taxa básica de juros segundo essa regra em comparação com a taxa SELIC efetiva em mesmo período:
Como podemos observar, a regra de PIB nominal, no caso brasileiro explorado, resultaria em níveis maiores e mais instáveis de juros; contrariando o colocado por Bhandari e Frankel. Logo, poderíamos concluir a partir disso que não seria desejável trocar o atual regime de metas de inflação por um regime de metas de PIB nominal estável. Mesmo sendo teoricamente mais deficiente do que o NGDP Target, a Regra de Taylor no Brasil é uma forma de “segundo-ótimo” mais adequada para a estabilização macroeconômica do que uma regra de PIB nominal.
Contudo, não podemos concluir que isso seja algo inteiramente conclusivo no debate.
III- Limitações dos Resultados:
Minhas estimativas possuem duas limitações que deixam o debate sobre uma regra de PIB nominal em aberto para o caso brasileiro.
Primeiramente, uma vez que só possuímos dados de expectativas para um período t-5 não é possível dizer que capturamos adequadamente as expectativas de longo prazo dos agentes como teorizado por Beckworth, Bhandari e Frankel.
Segundo, as expectativas coletadas incluem apenas expectativas dos agentes do mercado financeiro. Enquanto o Focus pesquisa apenas agentes desse mercado, o SEF do Federal Reserve coloca expectativas econômicas de agentes de diversos mercados; de forma que tais expectativas traduzem melhor escolhas na economia real.
Dessa forma, minhas estimativas são, na melhor das hipóteses, deficientes devido uma limitação estrutural dos dados do Relatório Focus. Por essa razão que a medida de diferença calculada é bastante deficiente mesmo para medir variações inflacionárias. Para verificar isso eu coletei e acumulei trimestralmente o IPCA do mesmo período e verifiquei o quanto as diferenças do PIB nominal neutro poderiam explicar o IPCA via regressão linear. O resultado foi um R2 ajustado de mísero 0,25.
Mesmo com a inclusão de expectativas de longo prazo no Relatório Focus a partir de 2019 o período não chega a dois anos concretos. Dessa forma, uma conclusão sobre tal debate só poderá ser gerada, em minha avaliação, com dados de mais longo prazo. Até lá, não podemos falar com convicção que uma regra de PIB nominal seja de fato inadequada para a economia brasileira.