A ciência das nações: conhecimento científico e desenvolvimento econômico

A ciência é, talvez, a mais importante de todas as instituições já desenvolvidas pela humanidade. Ela é o combustível da chama do progresso material que a humanidade testemunhou nos últimos 200 anos. Foi por meio de seus ensinamentos que o mundo moderno foi construído.

A relação entre ciência e desenvolvimento econômico

O desenvolvimento do método científico e as subsequentes revoluções científicas foram alguns dos fatores responsáveis pela grande divergência entre países ocidentais e orientais. Afinal, por qual razão a nação mais poderosa e próspera da maior parte da história humana, a China, não foi o berço da revolução industrial e a primeira a experimentar o grande enriquecimento?

Uma das respostas dada para o atraso chinês em relação ao Ocidente (sobretudo, os países do norte europeu) é que a China experimentou uma estagnação gradual de sua capacidade de inovação tecnológica devido ao método científico adotado e as instituições culturais de seu país.

Como enfatiza Justin Lin em seu artigo seminal sobre a Grande Divergência, ao contrário dos europeus, que primeiro desenvolveram uma robusta tradição filosófica para investigação dos fenômenos e partiam da formulação prévia de hipóteses e observações experimentais para a formulação de teorias gerais. Os chineses realizam experimentos isolados sem uma breve teorização sobre os fenômenos observados e nem uma generalização das observações em leis gerais. A descoberta de uma nova técnica agrícola ou de construção se dava por experiências diárias em trabalho e não eram teorizadas, de forma que o conhecimento sobre um dado fenômeno não era acumulado.

Além disso, a visão cultural chinesa de que eles eram o centro do mundo, tendo povos “bárbaros” tendo que lhes pagar tributos por sua “superioridade”, acabou favorecendo um isolamento cultural que os afastou do conhecimento e dos métodos desenvolvidos por outros povos.

Enquanto isso, os europeus desenvolveram um “mercado de ideias”, onde as obras e novas teorias eram transacionadas entre os países como mercadorias (você já agradeceu à indústria dos livros hoje?) e, assim, não ficavam restringidas a claustros acadêmicos específicos.

Além disso, os europeus eram mais práticos com relação ao conhecimento. Enquanto James Watt fez sua máquina a vapor para aumentar a eficiência da mineração de carvão por meio da drenagem das minas quando um lençol freático era perfurado, Su Song criou o primeiro mecanismo hidráulico do mundo e o primeiro relógio mecânico (uma clepsidra, para ser exato) não para fins de produção, mas sim para o mero divertimento do imperador.

Ainda que a ciência tenha nos proporcionado uma mudança singular de vida nos últimos 200 anos, ela também foi usada para fins completamente repugnantes. Da Bomba Atômica ao Holocausto, cada uso da ciência e do método científico para fins antiético e por vezes monstruosos, nos lembra que eles são um meio e não um fim. A ciência por si só não leva a um objetivo claro, são as escolhas dos agentes que a usam que determinam a natureza dos resultados objetivados.

Avanços e retrocessos científicos na história

A descoberta da síntese da amônia por Fritz Haber foi essencial para o desenvolvimento dos fertilizantes químicos que permitiram a Revolução Verde nos anos de 1950 e 1960. Isso permitiu um gigantesco aumento de produtividade na produção global de alimentos e uma subsequente redução da mortandade da fome, porém também foi essencial para o desenvolvimento da maior parte dos explosivos e armas químicas usadas na Primeira Guerra Mundial.

Durante sua história, a ciência teve um contato com a política devido o poder que ela trazia consigo. O uso político da ciência tem uma longa história, na maior parte das vezes catastrófica. Um caso histórico ilustra as terríveis consequências que advêm de se misturar opiniões políticas e ideologias com o poder das conclusões científicas. Mas, para isso, temos que investigar a vida de um homem: Nikólai Vavílov.

Nikólai nasceu um 1887, em Moscou, no auge do Império Russo. Durante toda sua vida, ele testemunhou as severas crises de fome por qual seu país passava periodicamente. A Rússia nessa época ainda era, em boa parte, uma monarquia feudal e tecnologicamente atrasada. Os camponeses russos, mesmo dispondo das terras mais férteis da Europa, tinham suas plantações devastadas por secas periódicas e invernos rigorosos que causavam graves crises de fome, somente solucionadas por meio de ajuda humanitária internacional.

Vavílov cresceu, estudou botânica e se aventurou pelo novo campo da biologia, a genética, para ajudar seu povo, e potencialmente o mundo, a nunca mais passar pelo problema da fome. Para isso, ele viajou para os chamados “berços das civilizações” (as grande áreas agrícolas férteis de terras fluviais) para coletar as espécies primitivas dos modernos grãos. Sua ideia com isso era aplicar as modernas técnicas da genética, desenvolvidas pelo monge austríaco Gregor Mendel, para selecionar características de resistência nos grãos, como colocou a jornalista da BBC Brasil, Dalia Ventura, em sua matéria sobre a vida de Nikólai:

Vavílov foi um dos primeiros cientistas a reconhecer a importância da diversidade genética. Por isso, tinha que voltar aos lugares onde a humanidade havia começado a domesticar as plantas para resgatá-las. Durante milênios, os agricultores selecionaram as espécies que proporcionavam alto rendimento e bom sabor. Nesse processo, os genes que conferiam propriedades úteis, como resistência a doenças e repentinas no clima, acabaram perdidos. O resultado: alimentos de melhor qualidade, mas culturas menos resistentes; um traço que ceifou muitas vidas ao longo da história. Então, a única maneira de devolver os genes perdidos às plantas era encontrar seus ancestrais selvagens e aproveitar sua herança genética.

Com isso em mente, Vavílov e seus alunos viajaram por cerca de 34 países reunindo as espécies primitivas das plantas que deram origem aos grãos modernos e armazenaram-as em um gigantesco banco de sementes, que no auge tinha cerca de 370 mil exemplares de sementes de todo mundo.

Rapidamente, a influência de Nikólai cresceu entre a comunidade científica internacional como botânico e essa influência foi determinante para o estabelecimento do darwinismo na academia científica russa. Como colocam Carlos Fiolhais e David Marçal:

A genética foi-se impondo no mundo científico na segunda metade do século XIX e, principalmente, no século XX. Encontrou defensores nas academias soviéticas, o mais importante do quais foi o biólogo russo Nikólai Vavílov, que dirigiu o Instituto de Botânica Aplicada e Novos Cultivos de São Petersburgo.

Porém, um homem iria desafiar os dados e as conclusões trazidas por Vavílov e os darwinistas: o agrônomo russo Trofim Lysenko. Esse homem discordava das teorias darwinistas e mendelianas sobre o processo de evolução e aprimoramento das espécies.

Para ele, essas ideias iam contra a visão marxista, então predominante e fundamental para a existência da União Soviética, de que o processo histórico era determinado por uma relação dialética entre unidade em competição de soma-zero.

Assim, seriam as ideias (já refutadas então) de Jean-Baptiste de Lamarck e de Ivan Michurin, de que os melhoramentos observados nas espécies eram resultado de um processo de adaptação ecológica e competitiva em cenário de recursos limitados e não de uma seleção natural entre genes específicos para dados fins impostos pelo ecossistema que em a espécie está inserida, que explicavam melhor a evolução.

Partindo disso, Lysenko se opôs à proposta de Vavílov de selecionar um determinado set de genes a partir do banco de sementes e propôs que, ao invés disso, as sementes dos grãos frágeis (trigo, cevada e centeio) fossem armazenadas sob condições extremas de frio e falta de água para que pudessem se adaptar a tais condições e desenvolverem as características desejadas de resistência.

Logo, o Lysenkoismo se firmou com doutrina oposta aos mendelianos e darwinistas russos, porém sem a influência garantida por Vavílov à pesquisa genética. Todavia, tudo mudou quando Stalin assumiu o poder na URSS.

A ciência biológica na União Soviética

Dado a crise de abastecimento criada pela Nova Política Econômica de Lênin, com a estatização dos grandes latifúndios do Império Russo, Stalin solicitou a Vavílov, então responsável pela academia soviética de pesquisa botânica e agronômica, de desenvolver uma nova variedade de semente em um rápido período de tempo para enfrentar a crise de fome de então.

Todavia, qualquer pessoa familiarizada com o mínimo de teoria genética sabe que isso seria impossível, dado que seriam necessários anos para os genes fossem selecionados adequadamente. Como Ventura coloca em sua reportagem:

“A última fome testemunhada por Vavílov deveu-se, em grande parte, à coletivização das fazendas privadas por Stalin, que as transformou em uma linha de produção e reduziu consideravelmente suas receitas. Stalin precisava de um bode expiatório para a fome e o fracasso de sua coletivização de fazendas e Vavílov era o candidato ideal. Deu-lhe 3 anos para produzir variedades resistentes a tudo, embora Vavílov tivesse especificado que cientificamente o prazo não poderia ser alcançado antes de 10 ou 12 anos.”

Insatisfeitos com os resultados de Vavílov, e considerando o seu darwinismo como uma ideologia burguesa da “sobrevivência do mais apto” (o libertarianismo de Spencer é grande parte culpado por essa politização de Darwin), a nomenklatura soviética logo abraçou as ideias de Lysenko como as que melhor refletiam o ideário da revolução.

Assim, Nikólai foi deposto de seu cargo como diretor do Instituto de Botânica e esse cargo passou para Trofim, onde esse o exerceu com poderes ilimitados. Logo, uma “caça às bruxas” começou na União Soviética contra os cientistas darwinistas e mendelianos. Como colocam Fiolhais e Marçal:

Apesar de seu sucesso experimental( e do insucesso da teoria michurinista adotada por Lysenko), a teoria cromossômica da hereditariedade foi considerada reacionária e burguesa. Os geneticistas que se recusavam a aceitar os novos postulados oficiais sobre o funcionamento da hereditariedade foram afastados dos seus cargos, perseguidos e aprisionados, em processo sumário que alguns casos foram parte de purgamentos mais gerais.

Com a eliminação da oposição, o lysenkoismo pode se institucionalizar como doutrina oficial de biologia da União Soviética, com a nomenklatura estabelecendo ela como única verdade possível de ser ensinada nos cursos de biologia das academias soviéticas. Com a dominância de suas ideias, Trofim pode desenvolver seu fenótipo. Stalin deu total liberdade para que Lysenko e seus seguidores usassem suas teorias na gestão dos recursos das propriedades do estado soviético. O jornalista Sam Kean, ao tratar das consequências do lysenkoismo, coloca:

No fim, Lysenko começou a ‘educar’ os grãos soviéticos para germinarem em diferentes períodos do ano colocando eles em água congelada, além de outras práticas. Ele dizia que as futuras gerações de grãos se lembrariam dessas condições ambientais e, mesmo eles mesmos nunca tento sido afetados por tal, iriam herdar os traços benéficos da adaptação. De acordo com a genética tradicional, isso é impossível; é uma ideia semelhante a eu cortar a cauda de um gato e esperar que os filhotes nasçam sem ela. Lysenko, indiferente a esses fatos, logo estava também se gabando de plantar laranjeiras na Sibéria, como afirma o livro Hungry Ghosts. Ele também prometeu aumentar a produção agrícola em todo país e converter o interior russo em vastas fazendas.

Essas afirmações eram exatamente o que os líderes soviéticos queriam ouvir. No final dos anos 1920 e começo dos anos 1930, Joseph Stalin — com a consultoria de Lysenko — instituiu um catastrófico plano para ‘modernizar’ a agricultura soviética, forçando milhões de pessoas a trabalhar em fazendas estatais coletivas. Uma falha generalizada nos grãos e fome subsequente foram as consequências. Stalin se recusou a reverter a política, todavia, e ordenou que Lysenko solucionasse o problema aplicando métodos baseados em suas ideias. Lysenko forçou os agricultores a plantar as sementes bem perto uma das outras, em razão disso, uma vez que, de acordo com sua ‘lei da vida das espécies’, plantas de uma mesma ‘classe’ nunca competiriam umas com as outras. Ele também proibiu o uso de pesticidas e fertilizantes.

Como consequência do lysenkoismo, a Rússia enfrentou as mais severas crises de fome de sua história e o então “celeiro” da União Soviética, a Ucrânia, experimentou um genocídio de sua população; tanto por causa da fome como por causa da repressão do governo stalinista contra os camponeses, acusando-os de conspirar contra a revolução limitando a oferta de alimentos.

Em razão dos métodos de Lysenko e do uso de sua “ciência” por Stalin, cerca de 7 milhões de pessoas morreram de fome na União Soviética até os anos 1950 em razão da limitação severa da produção de alimentos.

As consequências do lysenkoismo foram ainda para mais longe da União Soviética, em verdade, pois nos anos 1960 a China maoista iria aplicar os mesmos métodos utilizados por Stalin e teria resultados ainda mais desastrosos. E, no fim, Lysenko morreu sem nunca ser julgado por seus crimes contra a ciência e humanidade em Moscou, aos 78 anos, enquanto Nikólai Vavílov, o homem que queria solucionar o problema da fome no mundo, morreu de fome no gulag de Saratov, aos 55 anos de idade.

O lysenkoismo e suas consequências para a humanidade são um lembrete dos danos que o uso político da ciência podem causar. Sobretudo hoje em dia, onde não é incomum ver grupos políticos usando ideias supostamente científicas para justificar suas propostas políticas. Um exemplo bastante claro hoje em dia, e que é quase um espelho para os males de Lysenko, é o ataque de alguns grupos ambientalistas contra os organismos geneticamente modificados (GMOs).

Muitos movimentos antiglobalização e em prol do meio ambiente tem se mobilizado, e até agora convencido eficientemente o público, de que os alimentos geneticamente modificados causam danos à saúde humana e poderiam até mesmo levar a algumas formas de câncer. Porém, isso não é um consenso científico para a maior parte dos especialistas e o combate a alguns tipos de alimentos geneticamente modificados, como o arroz dourado, pode ter consequências horríveis para crianças passando fome em países em desenvolvimento; como Índia e Nigéria.

Enquanto a verdade estiver acorrentada na política, será natural esperar que a mentira retire pedaço por pedaço da prosperidade de nossas sociedades e, muito provavelmente, de nossas vidas…

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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