A noção de eficiência e os limites da racionalidade econômica

O conceito de eficiência é central na disciplina econômica. O sociólogo e economista italiano – ainda que nascido na França – Vilfredo Pareto[1] descreveu uma situação, batizada em sua homenagem como ótimo de Pareto, na qual a eficiência seria satisfeita de três formas: a) nas trocas, quando a distribuição da produção é tal que dispensa a necessidade de trocas suplementares entre indivíduos; b) na produção, quando ao acréscimo na produção de um bem não implica decréscimo na produção dos demais; c) na oferta de produtos, quando os bens disponíveis num dado mercado refletem as preferências dos agentes econômicos. Trata-se de um cenário tal que não é possível melhorar a situação de um agente sem prejudicar a de outro: um equilíbrio ideal.

Muito embora a formulação de Pareto tenha seus méritos em desdobrar a eficiência em (alguns de) seus múltiplos sentidos, surge um problema: é possível uma situação ideal satisfazer as exigências do ótimo de Pareto e, ainda assim gerar consequências negativas e até inaceitáveis do ponto de vista da organização de uma sociedade (a concentração de renda e de recursos num único agente econômico é um exemplo disso). O mesmo vale para outras noções que tiveram muita importância na história do pensamento econômico, como o conceito de utilidade. O jurista norte-americano Richard Posner[2] chegou a sugerir num artigo que pessoas pobres deveriam ser incentivadas a vender seus filhos “excedentes” para pessoas ricas que não os podiam gerar – ainda que ele tenha retrocedido e se retratado posteriormente. Mais uma vez, trata-se de uma situação que satisfaz as exigências de uma concepção de utilidade mas que não é aceita nem aceitável para grande parte das pessoas e sociedades.

É claro que é possível reformular e redefinir conceitos como eficiência e utilidade, de modo a torná-los mais afinados com, digamos, a moral e a política de uma sociedade, mas isso não nos livra de uma constante: a racionalidade estritamente econômica é limitada. Com isso, não quero dizer que nos devamos livrar da economia ou do pensamento econômico, muito menos que a racionalidade econômica seja uma esfera menor da razão humana em geral. Pelo contrário, o argumento que apresento brevemente aqui é o seguinte: ao identificarmos os limites da forma econômica de pensar o mundo, somos capazes de fortalecê-la. E isso em dois sentidos: a) evitando extravagâncias, ou seja, não a aplicando para além de suas fronteiras; b) situando-a no contexto mais amplo de outras esferas de valor – para usar a expressão clássica do sociólogo alemão Max Weber[3]  – e coordenando-a no desenvolvimento da organização social.

Ciente do processo de separação de esferas valorativas da qual falava Weber, o filósofo alemão contemporâneo Jürgen Habermas[4] se perguntou se ainda era possível falar em razão humana no singular ou se, ao contrário, seria melhor falar em razões, dimensões ou esferas de racionalidade. De maneira bastante original, Habermas defendera a manutenção de uma unidade procedimental da razão, mesmo que sua aplicação – por assim dizer – seja desdobrada em três: a) cognitivo-instrumental, a racionalidade científica e a ordenação de meios adequados para um fim pré-determinado; b) prático-moral, a racionalidade que articula deveres e obrigações, ética e direito; c) estético-expressiva, a racionalidade artística em suas diversas manifestações.

Além da preocupação em demonstrar – ou salvar – a unidade da razão humana, Habermas chama a atenção para um fenômeno que lhe parece extremamente danoso na sociedade contemporânea: a colonização da totalidade da vida pela racionalidade instrumental. Por meio de instrumentos como dinheiro e poder, o espaço para raciocínios morais e expressivos vem sendo cada vez mais reduzido, em prol de perguntas que tratam todo e qualquer fenômeno social como meio para um fim – e nunca como fim em si mesmo. Um exemplo que já apresentei aqui no Terraço Econômico é a pergunta pela utilidade de toda e qualquer pesquisa universitária, como se não houvesse alternativa possível de relevância[5].

O problema é que vivemos uma redução (ou tradução) de diferentes esferas de valor – ética, artística, política – nos termos de uma única: a técnico-econômica. No entanto, como os exemplos de Pareto e Posner parecem ilustrar, há uma resistência da vida empírica, prática. Há dimensões da vida humana que não obedecem a critérios de racionalidade instrumental, como utilidade ou eficiência – por melhor que os elaboremos e reformulemos – ou, mais diretamente: há coisas que o dinheiro não pode comprar, para falar com Michael Sandel[6].

Se, por um lado, é necessário respeitar dimensões valorativas da vida humana que não obedecem a critérios de utilidade e eficiência, o contrário também é verdade: não se deve ignorar a dimensão instrumental da vida, atropelar, por exemplo, a racionalidade econômica em nome de extrapolações artísticas ou políticas. Minha provocação aqui vai no sentido de manter cada coisa em seu lugar. À economia o que é da economia, à ética o que é da ética, à arte o que é da arte.

Não me parece ser o que ocorre no debate contemporâneo. Para ficarmos no Brasil, o recente debate entre o filósofo Ruy Fausto e o economista Samuel Pessôa na revista piauí é um exemplo nesse sentido: ao mesmo tempo em que Fausto parece atropelar a esfera econômica com considerações políticas e éticas em seu esforço de reconstruir a esquerda, Pessôa replica reforçando a expansão colonialista da economia, à qual todo o resto deve se submeter – e mais, tal como as regras se apresentam hoje, como se não fosse possível conceber novas formas de organização.

Que a economia seja uma dimensão essencial e incontornável da vida humana, não há dúvidas. Que ela não seja a única e nem deva ser a despótica, tampouco deveria haver.

Notas

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Vilfredo_Pareto [2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Posner [3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Weber [4] https://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BCrgen_Habermas [5] https://terracoeconomico.com.br/sentidos-de-relevancia-justificativas-para-o-financiamento-de-pesquisas-universitarias [6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Michael_J._Sandel

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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