Em que medida as privatizações são anacrônicas?

Em que medida as privatizações são anacrônicas e fazem sentido no cenário atual? Tudo indica que a lógica da equipe de Guedes tem divergido sistematicamente da lógica de mercado.

É com uma certa, porém, agradável inquietação, que os anos noventa preenchem os meus pensamentos! Tempos encantadores, é verdade… pena que as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Numa saudosa década onde ser liberal era cool, quase um estilo de vida, digamos… moderninho.

Na área econômica, desfilando num cortejo ébrio, mas muito distinto, circulavam entre as salas V.I.P.s do Galeão e do Santos Dumont executivos com mocassins de camurça e calças bege, aguardando as longas filas que se aprumavam na ponte aérea entre Rio, São Paulo e Nova York. Alguns, fazendo uso daqueles arriscados chapéus Panamá, outros, daquelas antiquadas gravatas borboleta do vovô.

Este era o belo retrato da elite econômica carioca dos anos noventa, que ainda transbordava aquela velha simpatia da bossa nova. Todavia, com um certo frescor de rempli de soi-même, e vinha bailando flamejante sobre as ondas do aquecimento econômico, advindo da abertura de capital da era Collor.

Nos anos noventa, a turma da PUC e do recém-criado Ibmec no fim da década, transitava entre os ministérios do, então, Presidente Fernando Henrique Cardoso e a Casa das Garças de Edmar Bacha. Bem como militavam em acaloradas discussões sobre a reforma administrativa ministrada por Bresser Pereira e sobre os artigos de Freedman, no tocante ao tripé macroeconômico e às políticas monetárias.

Não se pode, ainda, olvidar da figura mais emblemática do cenário liberal dos anos noventa: o brilhante e saudoso Roberto Campos. Suas teorias, tecidas algumas décadas antes, começavam a ser postas em prática na economia nacional.

Pedro Malan, Gustavo Franco, Andre Lara Resende, Persio Arida, e mais tardiamente Armínio Fraga, preenchiam o hall da fama dos economistas de tendência mais liberal no Brasil. Uma elite de notáveis, que se destacava nas áreas ministeriais e se reveza na presidência do Banco Central. Eram verdadeiros ídolos dos jovens, que se amontoavam nas faculdades de economia e engenharia de produção das instituições privadas de ponta. O crème de la crème!

Mas o que era comum entre eles? O estilo de vida da alta roda carioca, de pensamento aparentemente arrojado e contemporâneo, rivalizando, de forma contrastante, com os heterodoxos desenvolvimentistas, que tinham como expressão máxima leituras exaustivas de Celso Furtado e dos debates Cepalinos.

Havia também, um grupo de recém-formados que trabalhava com o mercado financeiro, e que, como eu, nas horas vagas gostava de discutir economia, degustando um charuto cubano regado a um delicioso JB Black no Esch da Rua do Rosário.

Por mais que pareça absurdo, sim, fumar era in! Inclusive, nas corretoras se fumava em áreas fechadas, ou seja, as mesas de operações mais pareciam com um show do David Guetta. Muita luz e cores, oriundas dos sistemas de cotação broadcast da Bloomberg, uma enorme gritaria, e muita… muita fumaça densa para complementar o espetáculo apoteótico dos pregões viva voz.

Éramos jovens que almejávamos uma vaga na mesa de operações dos grandes bancos de investimento cariocas, fosse ela no Pactual, no Icatu, ou mesmo no Opportunity, sendo certo que o antigo Garantia havia, a tempos, perdido parte do seu encanto, muito em face das operações terem migrado para Sampa, que vinha canibalizando gradativamente as operações na Bolsa da praça XV.

Neste panorama, os aspirantes a economistas faziam parte de uma gama de leitores ávidos de Paul Krugman, Miriam Leitão, bem como do Ilustríssimo Paulo Guedes – que trazia ideias inovadoras advindas de Chicago -, que redigia colunas nas revistas Época e Exame.

Um mundo de glamour, é verdade, que, diferente do cenário atual, ainda resguardava certos lapsos de civilidade e respeito ao próximo. A polarização sempre esteve presente, mas com tons pasteis de divergência, muito cavalheirismo e gentileza. Porque, como diria o poeta, gentileza sempre gera gentileza!

Alguns anos antes, o presidente Collor havia inaugurado uma era de ouro com a abertura econômica, algo que seria fortalecido posteriormente, a partir da estabilidade propiciada pelo Plano Real. A estratégia de combate, a época, tinha como pilar fundamental a premissa de se usar a política cambial para privilegiar a exportação, promovendo significativos superávits na nossa balança comercial. Isto, em que pese, os tempos serem de juros estratosféricos, que alimentavam o sistema rentista e a, ainda persistente, ciranda financeira decorrente da indexação inflacionária residual, inelástica e fortemente resiliente.

No epicentro do mercado financeiro, “privatizar” era quase um consenso, sentimento que crescia na sociedade desde à caça aos Marajás promovida pelo governo Collor alguns anos antes. O privilégio, o nepotismo e a corrupção eram endêmicos e as empresas públicas eram, inquestionavelmente, gigantescos cabides de emprego. Privatizar a antiga Telerj, por exemplo, ou a Vale do Rio Doce, fazia muito sentido, e poderia recolocar o Brasil na rota dos investimentos internacionais.

De fato, o que a história acaba por nos demostrar, é que talvez algumas privatizações tenham feito bastante sentido, tanto para o Estado, quanto para o mercado. Sendo muitíssimo provável, que as alternativas a privatização teriam se constituído em um desastre sem precedentes.

Todavia, a grande questão que merece efetivamente uma análise mais profunda, é o cenário de privatizações atual. Entre acertos e tropeços, o nosso atual ministro de economia Paulo Guedes deixou claro que, se fosse possível, sua intenção seria “vender tudo”! Yes, nós temos bananas, bananas para dar e vender…

Entretanto, será que o Brasil realmente tem um portifólio estatal robusto, de empresas modernas ou modernizáveis que sejam aprazíveis aos olhos do investidor estrangeiro? Ou que, mesmo se sucateadas agreguem algum valor aos investidores? Tenho grandes dúvidas. O objetivo desta iniciativa seria o de melhorar a arrecadação de um Estado falido, ou o de modernizar os serviços brasileiros diminuindo o “custo Brasil”?

Não resta qualquer dúvida de que o brilhantismo de Guedes está em teste e que o mercado aguarda ansioso a sua performance. Mas as críticas são muitas, a principal delas, e talvez a que mais mereça menção, verbera sobre um certo anacronismo da era Guedes, uma certa persistência em tentar aplicar soluções antigas para questões contemporâneas.

Uma coisa é certa, com o fiasco dos leilões do pré-sal, ficou claro para todos, que utilizar premissas oriundas de modelos de privatização ultrapassados consiste em erro grotesco e teratológico. Deve-se olhar pela ótica do cliente, suas necessidades e a demanda do mercado, e não, se pautar unicamente numa oportunidade financeira de taxas de retorno atrativas, ou na análise, fria e crua, de um valutation que ignore obstáculos humanos, onde se lê: legais, burocráticos e, principalmente, o novo jogo geopolítico mundial, a exemplo do que vem ocorrendo no mercado de geração de energia.

Todo o movimento no passado de matematizar e profissionalizar o mercado financeiro, numa fascinante mistura psicodélica de física, finanças e engenharia de computação, finalmente chegou ao seu auge e à sua exaustão. A nova tarefa contemporânea será o de buscar uma sensibilidade mais subjetiva, mais fuzzy: um bom entendimento do jogo geopolítico, geoeconômico, cumulado com uma precisa compreensão da teoria dos jogos no cenário mundial de empresas e nações.

Desta sorte, o mais importante será dar relevo à realidade comparada, contrastando o contexto atual, com aquele ocorrido nos anos noventa, pela perspectiva da aplicação do modelo liberal, bem como das resultantes díspares derivadas de ambos os casos.

 

 

Arthur Valle

Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV, MBA pelo Ibmec e autor das obras Fortuna Imperatrix Mundi – Um alerta para a crise global e A revolução do gás não convencional nos EUA: uma nova corrida do ouro?
Yogh - Especialistas em WordPress