O inverno está chegando!

A boa notícia é que não teremos que enfrentar zumbis de olhos brancos, nem tampouco o Rei da Noite! 

O que a série Game of Thrones[1] pode nos ensinar sobre guerras, economia e geopolítica?

Ora, ainda que num cenário fictício, é óbvio que a série da HBO[2], em parte, tenta remontar um período medieval, nos ilustrando com alto grau de dramaticidade e num enredo escatológico, a teia de tramas, mentiras e interesses que transcendem a conflagração de batalhas armadas.

Na verdade, guerra consiste num conceito que possui pelo menos três pilares relevantes que o sustentam, por um lado, os interesses geopolíticos e econômicos dos players, por outro, a manifestação do poderio militar e armamentista… e sempre fora assim, desde os primórdios e dos tempos dos sete reinos!

O que se mostra bastante curioso é que “guerra”, grosso modo, em nossa acepção mais comum tem sido uma figura simbólica associada, desde sempre, àquela paisagem saturada por uma constelação de tanques, uma miríade de homens armados, infantarias, cavalarias, sangue, suor e lágrimas. Todavia, há de se dar relevo ao fato de que o confronto bélico consiste tão somente numa faceta isolada da guerra que, sozinha, não explica o seu contexto geral.

Portanto, entende-la apenas pela perspectiva das batalhas em campo consiste numa simplificação rasa de um sistema de atores sociais muito mais amplo, complexo e abrangente.

De todo modo, o que vale trazer a ribalta é que esta conformação meramente estética e panorâmica bélica tem se transformando, a passos largos, ao longo da história, e é exatamente sobre este fenômeno que passo a elaborar!

Ocorre que a “Guerra Fria”, a luz dos livros de história, fora uma guerra de fato, muito embora travada pela competição econômica e geopolítica de duas grandes potencias, como se o fizessem por intermédio de tabuleiros de “War”.

Neste contexto, conquanto tenha sido “fria”, ou seja, contemplada apenas por alguns confrontos eventuais de natureza efetivamente militar, a exemplo do que se suscitara no caso da campanha norte americana no Vietnam[3], não deixou de ser uma guerra econômica e geopolítica, ou seja, acepção de guerra sem necessariamente genocídios em massa.

Desta sorte, com o passar das últimas décadas, essa estética essencialmente bélica tem perdido espaço, e isto, devido principalmente às mudanças culturais sucedidas, bem como à adventos tecnológicos inovadores.

O inimigo agora é outro, revestindo-se de diversos novos contornos e matizes, onde as cores contrastantes da artilharia pesada têm gradualmente cedido lugar para tonalidades mais tênues em gradações pasteis, a exemplo de outras formas e modelos do exercício de poder e conquista, onde cabe destacar: o domínio cultural, ideológico, econômico e principalmente tecnológico.

Insta salientar, que há inúmeras fontes axiológicas[4], principalmente centradas no discurso dialético, para explicar o fenômeno da diminuição dos conflitos armados e em larga escala, uma delas, obviamente, fundada no medo da humanidade de uma hecatombe nuclear.

No entanto, prefiro me atentar exclusivamente para um exame com fulcro na contextualização do fenômeno, traçando um diagnóstico da dinâmica atual, mais em termos de formas de domínio e estratégias de conquista (de forma ferramental e institucional), do que elaborando sobre as causas que nos trouxeram a este novo cenário.

Não resta dúvida de que desde o fim da grande guerra mundial o mundo já se encontra numa guerra “velada”, assim, o que ainda não é pacífico na literatura, ou seja, a ideia de que não existe um marco que determine o fim da Guerra Fria, pode ser visto, primo ictu oculi, através do extenso cabedal de acontecimentos que precederam o início do século XXI.

Para efeito de amostragem, nos anos oitenta a queda do muro de Berlin[5] (considerada por muitos o efetivo desfecho do conflito entre EUA e antiga URSS), fenômenos econômicos como a enxurrada de petrodólares[6], o Endaka[7], a crise da dívida[8] dos países sul-americanos, bem como o softlanding[9] do período Reganomics[10], são exemplos claros de uma guerra econômica e comercial que não estampou manchetes, mas que, entretanto,  ultrapassa, em grau de relevância e efetividade, os eventuais conflitos armados que foram deflagrados no mesmo período.

Em igual passo, uma curva íngreme e ascendente de destruição criativa transformava o segmento de inteligência, onde a espionagem tradicional[11], daquelas que víamos nos filmes de James Bond, cedeu espaço para um mercado de espionagem de cunho industrial, econômico e tecnológico.

O “espião que me amava” tivera que aprender engenharia reversa para ultrapassar fronteiras tecnológicas dos países adversários, assim como fizeram os japoneses e os tigres asiáticos, aliado a isso, tivera que aprender tecnologia da informação, do mesmo modo que os chineses, no intuito de hackear servidores de grandes conglomerados empresariais e departamentos de contraespionagem.

Não obstante, Joseph Snowden[12], e não, por favor não confundam com Jon Snow[13], trouxe à baila as vísceras de um sistema de inteligência norte americano insidioso e trapaceiro, que implodira de vez o mainstream, jogando por terra qualquer ideia de “fair play” nas relações diplomáticas e rescindindo unilateralmente, por corolário, todos os tratados internacionais, quando da utilização de grampos até em presidentes da américa latina, para que o pais se valesse, obviamente, de vantagens econômicas e geopolíticas.

E é nesse ponto o que me traz mais consternação, pois a ingenuidade da esquerda no Brasil, por mais esquizofrênica que fosse na peleja contra o fantasma do “imperialismo norte americano”, jamais conseguiu ter a sensibilidade de alcançar a dimensão e o significado destes atos de guerra! Isso mesmo, atos de guerra!

Ora, alguém aqui já ouviu falar de espião brasileiro? Excluindo-se, por oportuno, o Tarciso Meira no papel do atrapalhado do Arapoga, novela homônima dos anos 90.

De fato, ou o tal “espião brasileiro” é um indivíduo muito bom na arte do disfarce e da camuflagem, ou trata-se apenas de mais um personagem de ficção, existente apenas nas novelas de Dias Braga.

Lamentavelmente, é essa figura ridícula e pitoresca que vem à mente, quando pensamos em espionagem no brasil!

É claro que não estou aqui, de forma alguma, desmerecendo o trabalho da ABIN, cujo quadro é da mais alta estirpe, entretanto, a agência tem sido sucateada e as políticas de inteligência a ela atribuídas nas últimas décadas pelo executivo tem sido essencialmente voltadas para problemas civis e domésticos do país, sem uma orientação mais clara sobre contraespionagem,  inteligência econômica, industrial, empresarial, tecnológica, ou mesmo matérias atinentes à geopolítica internacional.

A agência não fora devidamente fortalecida com recursos, nem tampouco com a ampliação do seu escopo de atuação, para enfrentar a guerra econômica e tecnológica que já estamos vivendo. Destarte, permanece orbitando sobre a égide de uma cultura autocentrada, inclinada para os problemas internos do Brasil, sem qualquer vocação econômica ou empresarial internacional.

Noutra vertente, na contramão do enfraquecimento das agências de inteligência econômica e tecnológica que vem ocorrendo no Brasil, a China desenvolveu um grupo de hackers com excelência técnica, tanto para inflacionar o mercado de bitcoins, manipulando o mercado financeiro, quanto para ter acesso ao “intransponível” sistema de inteligência e segurança norte americano.

A Rússia, por sua vez, conforma aduz alguns artigos na mídia, continua utilizando práticas de envenenamento, que nos trazem à memória a temível KGB da era da Guerra Fria.

Noutra cadência, os EUA vêm investindo pesado em um sistema espacial de satélites que, com algoritmos sofisticados de reconhecimento facial, conseguem até detectar terroristas nos confins desérticos do oriente médio.

E por aí vai, países como Índia, Israel, dentre outros das mais diversas linhagens estão se preparando para trespassar as fronteiras tecnológicas, mantendo-se na dianteira da competitividade no enfrentamento do grande inverno, ao alocar uma galáxia de recursos e capital intelectual para investimentos em tecnologia e informação.

Nessa mesma vertente, as redes sociais tomaram a forma de locus para a interação política e social, não havendo quem conteste que o Facebook foi determinante para promover a primavera árabe, um exemplo claro de que, se utilizado para fins estratégicos e geopolíticos, tais ferramentas podem consistir em poderosos instrumentos de controle de massa e vantagem geopolítica.

Como não seria diferente, há até quem diga que, por intermédio de inteligência em tecnologia da informação e redes sociais, a Rússia possa ter influenciado as eleições americanas!

Mas o que o Brasil tem feito neste sentido? Em contraste, tem vivido na contramão dos acontecimentos contemporâneos! O gigante deveria acordar e começar a pensar em inteligência tecnologia e econômica de maneira mais séria!

Me causa imensa espécie a envergadura teratológica do orçamento de inteligência dos EUA, país que, ao passo que difundia para o mundo  o “Consenso de Washington” e Estados minimalistas e mercados laissez-faire, destinava recursos públicos, sim recursos estatais, na ordem de duzentos bilhões de reais anuais exclusivamente para o setor de inteligência governamental e com endereço certo, instituição paramilitares como a CIA, ou a NSA.

Liberal para o mundo, mas estatal para os assuntos que realmente importam: inteligência, segurança nacional, e projetos estratégicos para obter vantagens econômicas, tecnologias e no campo da geopolítica internacional!

Tenho grandes dúvidas de que a alocação deste orçamento colossal, um verdadeira caminhão de estatais, tenha apenas como justificativa o contraterrorismo, que, a meu ver, consiste apenas numa grande cortina de fumaça sobre os reais interesses de Estado. A pauta oculta é naturalmente inteligência militar e econômica, forjada em projetos tecnológicos e estratégicos do ponto de vista geopolítico e comercial.

Deste modo, quando veio a tona a notícia de que, numa organização administrativa no Brasil, o COAF ― Conselho de Controle de Atividades Financeiras ― seguiria para o Ministério da Economia, bem como as declarações do ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni de que a ideia seria a criação de uma Agência de Inteligência Econômica, ocorrera, neste momento, a inspiração para escrever esse artigo.

É claro que o combate à corrupção tem que ser mantido e cada vez mais fortalecido, para acabar de vez com um dos maiores males que assolam o país! Todavia, ao se pensar em Agencia De Inteligência Econômica, surge gravitando, uma oportunidade histórica de se repensar a estratégia de inteligência no Brasil, a se ampliar fortemente o escopo desta iniciativa para áreas de atuação que possam prover competitividade internacional nas matérias aqui advogadas.

Por que não fundir a ABIN e o COAF, unindo inteligência tradicional, com inteligência econômica?

Por que não incluir nesse guarda-chuva o fortalecimento de agências como a FINEP ― Financiadora de Inovação e Pesquisa ―, que, com expertise norteado para tecnologias estratégicas e para inteligência empresarial e industrial, desde inovações militares quanto novas fontes de geração de energia, tem atributos e vocação para ser o correspondente brasileiro do Darpa[14] ― Agência norte americana de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa ―?

Na história contemporâneas as inovações mais relevantes econômicas, como internet, GPS, advém de investimentos em tecnologias militares duais, e os EUA vem sendo a âncora deste progresso com investimento estatal militar, se mantendo na liderança da fronteira tecnológica em quase todos os setores mais representativos economicamente.

Na verdade, ao passo que Ciência e Tecnologia no brasil segue sempre associada à educação e ao fomento passivo, agonizando com contingenciamento de recursos, nos países desenvolvidos é tratada de forma séria e cordata, como prioridade para segurança nacional, para a garantia de hegemonia militar e geopolítica, bem como arauto da competitividade econômica.

Por derradeiro, por que não contemplar esta nova agência com uma grande central de inteligência em tecnologia da informação, blindando o Brasil contra hackers e promovendo o fortalecimento da contraespionagem, para que alcance minimamente a altitude dos acontecimentos internacionais?

Por que não criar uma estrutura que possa fiscalizar, sem censura é claro, seriamente as ameaças à segurança nacional, principalmente no que tange à internet e às mídias sociais ?

O inverno chegou e os aliados ganharam a Grande Guerra, agora temos que nos preparar para a última guerra!

Arthur Valle Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV, MBA do IBMEC. Autor das obras: “Fortuna Imperatrix Mundi – Um alerta para a crise global, Muiraquitã, 1999.” “A revolução do gás não convencional nos EUA: uma nova corrida do ouro?, TereArt Editora, 2015.” Referências / Notas do Artigo [1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Game_of_Thrones [2] https://www.hbobrasil.com [3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Vietn%C3%A3 [4] Cap, Piotr. “Axiological aspects of proximization.” Journal of Pragmatics 42.2 (2010): 392-407. [5] Bancher, Flavia. A queda do muro de Berlim e a presentificação da história. Atelie Editorial, 2003. [6] de Freitas Gomes, Carlos Thadeu. “Petrodólares e liquidez internacional.” Revista Conjuntura Econômica 34.7 (1980): 76-78. [7] Edgington, David W. “The geography of endaka: Industrial transformation and regional employment changes in Japan, 1986–1991.” Journal of the Regional Studies Association 28.5 (1994): 521-535. [8] Belluzzo, Luiz Gonzaga, and Júlio Gomes de Almeida. Depois da queda: a economia brasileira da crise da dívida aos impasses do Real. Ed. Civilização Brasileira, 2002. [9] Albo, Gregory. “Neoliberalism from Reagan to Clinton.” MONTHLY REVIEW-NEW YORK- 52.11 (2001): 81-89. [10] Bienkowski, W. “ECONOMIC LIBERALISM IN THE UNITED STATES AS AN ECONOMIC IDEOLOGY AND POLICY.” Optimum. Economic Studies 4 (2007): 21-36. [11] Cepik, Marco. Espionagem e democracia. FGV Editora, 2003. [12] Verble, Joseph. “The NSA and Edward Snowden: surveillance in the 21st century.” ACM SIGCAS Computers and Society44.3 (2014): 14-20. [13] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jon_Snow [14] https://pt.wikipedia.org/wiki/Defense_Advanced_Research_Projects_Agency

Arthur Valle

Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV, MBA pelo Ibmec e autor das obras Fortuna Imperatrix Mundi – Um alerta para a crise global e A revolução do gás não convencional nos EUA: uma nova corrida do ouro?

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