Em menos de um ano, foram várias as tentativas do Governo Federal – e, agora, do Senado – de incentivar, ou até mesmo priorizar, a participação do setor privado no saneamento brasileiro. Duas Medidas Provisórias editadas durante o governo Temer caducaram, acabando por dar lugar, mais recentemente, a um projeto de lei proposto pelo Senado e encaminhado para a Câmara dos Deputados. As justificativas para a privatização do saneamento se baseiam na falta de recursos públicos e na decorrente insuficiência de investimentos no setor, que ainda conta com grandes déficits de atendimento, principalmente no que diz respeito ao esgotamento sanitário. Mas a proposta, de fato, solucionaria o problema do saneamento no Brasil?
O texto é organizado da seguinte forma: 6 subitens discutindo os problemas da proposta de privatização, seguido por um segundo item que propõe soluções para melhoria da situação do saneamento no Brasil. Por fim um, terceiro item de conclusão.
Problematização da privatização do saneamento
É proibida a participação do setor privado no saneamento do Brasil?
Não. A contratação por ente público de terceiros privados é permitida, assim como a prestação privada em si, que é autorizada pela lei de concessões de 1995 (exemplos: Niterói-RJ, região dos lagos – RJ, Timon-MA, Pará de Minas – MG, Limeira – SP, Saneatins – TO). Além disso, parcerias público-privadas também são possíveis, estando autorizadas pela lei de PPPs de 2004 (exemplos: PPP do Paraopeba em Minas Gerais, PPP do esgotamento sanitário da Região Metropolitana de Recife).
Cabe ao município, que é o responsável legal pela concessão dos serviços, decidir se lhe interessa a prestação direta – através de órgão municipal – ou indireta – por empresa pública, empresa privada ou companhia estadual de saneamento. Está é uma normatização definida pelo atual texto da lei 11.445 de 2007, conhecida como marco legal do saneamento.
O problema do saneamento consiste apenas na ausência de recursos disponíveis para investimentos?
Durante o período entre 2003 e 2013, o Estado brasileiro contava com abundância de recursos devido ao boom mundial do preço das commodities (minério de ferro e petróleo, principalmente). Nesse período, foram disponibilizados recursos para o saneamento através de programas da FUNASA e do recém-criado Ministério das Cidades. No entanto, durante esse período, nem todos os recursos disponíveis eram executados. Isso ocorria devido a dificuldades técnicas das prefeituras e governos estaduais em acessarem o recurso e/ou coordenarem sua execução, isto quando a própria existência do recurso não era desconhecida.
Ainda hoje, existem linhas de créditos subsidiadas de entidades internacionais, com montantes volumosos disponíveis para investimentos em infraestrutura (KFW, BIRD, BID). Só que, novamente, a incapacidade técnica dos gestores municipais, o desconhecimento da possibilidade de se obter crédito e o alto grau de endividamento do setor público têm impedido o acesso a esses recursos. Portanto, o problema não passa pela falta de recursos propriamente dita.
Outro ponto importante a se citar é que o problema não se resume a inexistência de infraestrutura. Estudo recente elaborado pela ABAR (Associação Brasileira de Agências Reguladoras) cita o problema do investimento como apenas um, entre outros problemas, que dificultam o avanço do atendimento com esgotamento sanitário. São citados problemas nas políticas tarifárias, de subsídios; ociosidade de redes de esgoto; fragilidade da regulação; planejamento inexistente ou ineficaz; ausência de propostas alternativas para áreas pouco adensadas (rurais na maioria); subvaloração do esgotamento sanitário; áreas irregulares com impossibilidade jurídica de prestação dos serviços; áreas que são consequência da ausência de planejamento urbano das cidades. Cada um desses problemas impacta na ausência da infraestrutura de esgotamento sanitário, impedindo seu avanço em termos de atendimento. Todos citados são extremamente complexos, envolvendo diversos e diferentes setores da governança pública, que caberia uma discussão aprofundada sobre cada um deles, em busca de solucioná-los.
Quais são os resultados de experiências de privatização do saneamento no mundo?
Muitos locais ao redor do mundo que privatizaram o serviço de saneamento retomaram o modelo de prestação pública. Entre os problemas observados, cabe citar a falta de transparência da prestação, tarifas elevadas, corrupção e descumprimento de prazos dos contratos. Segundo estudo da ONU, foram mais de 180 casos em 35 países. A reestatização ocorreu tanto em países desenvolvidos (França, Alemanha) como em países em desenvolvimento (Hungria, Venezuela, Argentina e Bolívia), e em países subdesenvolvidos (Moçambique, Bangladesh).
Podemos citar o caso “exitoso” da privatização do saneamento na Inglaterra e no País de Gales, que completa 30 anos em 2019. Tal sucesso tem que ser observado com muito cuidado, principalmente se comparado ao contexto brasileiro. Segundo estudo do IPEA, a privatização ocorreu em momento em que já existiam altos índices de atendimento em termos de saneamento nos dois países. Várias críticas foram feitas ao programa durante os primeiros anos de privatização, com reajustes muito acima da inflação que, apesar de gerarem lucros exorbitantes para os investidores, pesavam fortemente sobre os consumidores, gerando inclusive aumento da inadimplência. Cabe citar, porém, a força institucional dos órgãos reguladores de água e do saneamento (DWI e OFWAT), de extrema importância para fixar normas de prestação de serviço e controlar a qualidade da prestação do serviço, além de impor o atendimento a metas e cronogramas de investimentos.
Existe, portanto, uma série de questões institucionais que acarretaram os resultados gerados pela prestação privada do saneamento na Inglaterra e no País de Gales. Ressalva-se as diferenças em relação ao contexto brasileiro, por exemplo: menor extensão territorial; menor desigualdade econômica social, inclusive entre regiões do país; maior capacidade de pagamento por parte da população; maior conhecimento da população sobre seus direitos e, portanto, maior pressão política em termos de melhorias no saneamento; cultura institucional voltada para prestação privada de serviços públicos.
Quais são os resultados de experiências de privatização do saneamento no Brasil?
No ano de 2000, o município de Manaus resolveu conceder a prestação dos serviços de saneamento a uma empresa privada, deixando de ser atendida pela companhia estadual. Depois de 19 anos, Manaus amarga o top 5 dos municípios com piores indicadores de saneamento dentre as 100 maiores cidades do Brasil, segundo o ranking do Instituto Trata Brasil. Ao mesmo tempo em que Manaus enfrenta problemas, estudo da AESBE aponta que, em 2011, o restante do estado do Amazonas apresentava os piores indicadores de saneamento dentre todos os estados brasileiros.
Caso similar ocorreu no estado do Tocantins: em 1998, a companhia estadual de saneamento básico, a Saneatins, foi privatizada, vendida para a Odebrecht Ambiental. Em 2010, devido ao não atendimento aos contratos, a empresa devolveu ao estado os 78 municípios menores e deficitários, ficando responsável apenas pelos 45 municípios mais rentáveis. Esses dois exemplos evidenciam o interesse do prestador privado em atender apenas os locais superavitários – ou seja, onde as receitas superam as despesas, premissa óbvia do setor privado.
Os locais superavitários são normalmente os municípios maiores, adensados e com maiores rendas per capita. Logo, os grupos de municípios que concentram as características supracitadas apresentam melhores índices de atendimento e qualidade. Muito tem se falado da boa prestação realizada em Niterói (500 mil habitantes) por um prestador privado. Porém cabe a comparação com uma cidade de porte parecido, que conta com prestação municipal pública, como Uberlândia (600 mil habitantes), que está à frente de Niterói no ranking de saneamento do Instituto Trata Brasil. Pode-se notar que não é a natureza do prestador, se ele é público ou privado, o fator preponderante a influir na qualidade do serviço prestado. Não temos, então um ganho de eficiência tão significativo – por vezes, aliás, não há ganho algum em eficiência – que justifique a prestação privada em detrimento da prestação pública. Pelo contrário, pode ocorrer prejuízo à lógica de subsídio cruzado que beneficia a prestação de saneamento em locais deficitários, como demonstrado nos estados do Amazonas e do Tocantins.
Qual a importância do subsídio cruzado no saneamento brasileiro?
Como levantado anteriormente, as companhias estaduais de saneamento praticam o subsídio cruzado. A ideia foi originada durante o Planasa, programa do governo militar da década de 70 que buscava reduzir os déficits de atendimento com saneamento, por meio do incentivo aos prestadores de serviço atuantes em escala estadual. O subsídio cruzado entre municípios consiste na transmissão de recursos oriundos das tarifas cobradas em municípios superavitários para municípios deficitários. Caso a prestação fosse municipalizada, os municípios deficitários teriam que praticar tarifas maiores a fim de cobrir os custos dos serviços em sua área, considerando investimentos e operação. Esse aumento poderia onerar excessivamente a população residente nesses municípios, por vezes inviabilizando a prestação do serviço.
Estudo de Leoneti de 2011 (Figura 1) demonstra que as regiões que mais carecem de investimentos possuem menor renda per capita, ou seja, menor capacidade de pagamento. Caso a prestação seja na modalidade privada, todo investimento realizado será remunerado pelas tarifas cobradas. Dessa forma, não haverá a possibilidade de investimentos de recursos não onerosos – advindos dos impostos arrecadados nas regiões mais ricas do país, que já contam maiores índices de atendimento – em locais com menores índices de atendimento. Logo tais regiões, que já vivem uma realidade excludente, seguirão negligenciadas com o reforço da lógica privada, do lucro.
Figura 1 – Necessidade de investimento em saneamento e capacidade de pagamento por macrorregião brasileira
Fonte: Leoneti (2011) adaptado de AESBE (2006)
Soma-se o risco de precarização dos serviços das localidades deficitárias atualmente atendidas por companhias estaduais, que se sustentam através do subsídio cruzado. A título de exemplo, uma das maiores companhias estaduais de saneamento básico do Brasil, conta com 37% de municípios superavitários sustentando outros 52% deficitários. Os demais 11% ficam no zero a zero – o valor arrecadado via tarifa é equivalente ao que é gasto nesses municípios com água e esgoto.
A ideia de blocos de municípios proposta pelo senador Tasso Jereissati resolveria a questão do subsídio cruzado?
Foi proposta a reunião de municípios em blocos para realização das concessões à iniciativa privada, com a inserção tanto de municípios superavitários quanto deficitários de modo a balancear tais blocos. Entretanto, a implementação dessa ideia se mostra bastante complicada. A ideia seria reunir municípios próximos? Contíguos fisicamente? Ou municípios de qualquer região do Brasil? Os contratos de programa, vigentes com companhias estaduais, têm prazos diferentes para findarem de acordo com a data em que foram assinados pelos municípios. Com o término de seu contrato, determinado município teria que aguardar o encerramento de contratos assinados por municípios que apresentassem as características desejadas, para só assim formarem um bloco para concessão? Como o município aguardaria sem contrato de prestação de serviço? Como se daria a situação dos municípios inseridos em regiões metropolitanas ou similares que contam com sistemas integrados de abastecimento de água ou esgotamento sanitário? Os Estados ou a União forçariam os municípios de um determinado bloco a formarem um consórcio? Essa não é nem mesmo uma possibilidade juridicamente viável.
Proposta similar foi tentada no Estado de Minas Gerais a fim de dar escala as soluções de resíduos sólidos, como usinas de triagem e reciclagem, além de aterros sanitários regionais. No entanto, da proposta de 56 consórcios municipais, menos de dez foram adiante. No fim das contas, essa proposta de blocos de municípios parece mais uma desculpa para levar o processo de privatização adiante, do que de fato uma solução para o problema, visto que não fica claro como essa medida seria efetiva.
Quais seriam soluções para avançar com a universalização do saneamento, então?
Pela discussão, fica claro que o problema do saneamento é bastante complexo, e que natureza do prestador – se ele é público ou privado – não está no cerne do problema.
A solução passa por sanear as contas das companhias estaduais, o que pode ser feito por meio do fortalecimento das agências reguladoras, dando a elas a devida autonomia prevista pela Lei nº 11.445. As tarifas não podem ser administradas pelos governos estaduais de forma a se fazer política. Política estúpida, ilusória e de curto prazo, que causa prejuízos às companhias estaduais com a definição de tarifas mais baixas que o mínimo necessário para sua sanidade fiscal, além de, no médio e longo prazo, atrapalhar a entrega de um serviço público de qualidade a cada vez mais cidadãos.
Soma-se a possibilidade de cobrança de serviços de esgotamento sanitário quando a rede está disponível ao usuário. Muitas vezes, certos cidadãos não se conectam à rede de esgoto disponível em sua rua para não arcarem com o ônus da tarifa. Seu esgoto, por muitas vezes, é lançado de forma irregular em redes pluviais, redes clandestinas, a céu aberto ou diretamente em cursos d’água. Por vezes, esses usuários adotam soluções individuais (fossas sépticas) sem que a limpeza ocorra com a devida frequência ou que a construção siga as normas de segurança ambiental (fossas rudimentares), o que também gera impactos no ambiente. Esse cidadão, além de poluir o meio ambiente, não colabora com o pagamento da infraestrutura que foi instalada para atendê-lo, atrasando o avanço dos serviços de saneamento. Portanto, é razoável que os prestadores de serviço possam cobrar desses cidadãos ao menos os valores de disponibilidade da infraestrutura existente na sua rua ou avenida.
A situação abordada acima evidencia outra, ligada ao serviço de abastecimento de água. Nos últimos anos que o Sudeste enfrentou escassez hídrica, muitos usuários que possuíam condições financeiras migraram para captações subterrâneas próprias. Os órgãos ambientais dos estados do Sudeste perceberam um aumento significativo dos pedidos de outorgas. Isso quando as captações não são feitas de forma irregular, sem o devido pedido de outorga. Grandes usuários justificam a migração para soluções individuais comparando o custo da água fornecida pelos prestadores públicos com os custos de captações próprias. Portanto, é importante que se combata as captações irregulares não obstante a dificuldade de fiscalizá-las, podendo-se contar com a tecnologia nessa tarefa. Outra opção a se pensar é a reformulação da política tarifária em termos da cobrança de categorias comerciais e industriais, de forma a evitar a evasão de grandes usuários, que poderiam ajudar a subsidiar o setor.
Soma-se às medidas propostas para aprimoramento do setor de saneamento o auxílio dado pelo Governo Federal aos municípios de modo que, estes consigam acessar fontes de financiamento oferecidas por entidades internacionais ou mesmo nacionais. Sugere-se a opção de incluir uma contrapartida federal nos contratos, atrelando o pagamento dos valores devidos ao repasse de recursos federais para os municípios devedores. Cita-se também possibilidade de refino e otimização do planejamento do setor, que tem sido aquém do requerido pela Lei nº 11.445. A Lei estabelece que cada município produza um plano municipal de saneamento básico, levantando os dados da situação atual do município, aonde se quer chegar, quando e como. O que se tem visto, porém, são diversos municípios sem planos elaborados ou atualizados, além de diversos planos de baixa qualidade que não apresentam o conteúdo mínimo estabelecido pelos órgãos federais responsáveis. A sugestão aqui seria um planejamento integrado com os planos de bacias hidrográficas. Essa integração resultaria em um planejamento que levaria em consideração as questões territoriais contíguas dos recursos hídricos, visão essencial para efetividade das ferramentas de gestão e melhoria do setor de saneamento. Dessa forma, se daria escala aos planos, evitando que municípios sejam obrigados a possuir um plano, mesmo não dispondo dos recursos necessários para elaborá-lo.
Não podemos deixar de citar também o aumento da participação privada no setor. Sim, essa possibilidade é bem-vinda quando inclui o devido controle por parte do Estado, que não deve se eximir completamente da sua responsabilidade em relação ao saneamento, vinda na forma de fiscalização, planejamento e, em partes, gestão. É possível tornar a participação privada mais aceita dentro dos setores do saneamento – que, comumente, são bastante conservadores – sem que a prestação seja totalmente cedida para iniciativa privada. Essa participação pode se dar através dos instrumentos já citados no início do texto. As PPPs, quando bem geridas, com cláusulas contratuais que compartilham os riscos de forma justa entre público e privado, são ferramentas interessantes para suprir a falta momentânea de recursos dos estados, municípios e companhias estaduais brasileiros.
Conclusões
De forma geral, ao se avaliar todas as informações colocadas acima relativas ao contexto do saneamento brasileiro e às experiências de privatização do saneamento observadas no mundo e no Brasil, fica claro que essa medida não vem para atender os anseios da maioria da população. A medida vem ao encontro do atendimento dos anseios de uma minoria, uma minoria organizada, formada por grandes empresas ligadas à construção civil e multinacionais de saneamento, que têm exercido grande influência sobre diversos setores do governo, seja no poder executivo, seja no legislativo.
Das associações que estão ligadas ao saneamento, ABES (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), ABAR, ASSEMAE (Associação Nacional dos Serviços de Saneamento Municipais) e AESBE (Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais) foram contrárias às medidas provisórias propostas e à PL que força a privatização; a única entidade favorável, obviamente, foi a ABCON (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).
O abastecimento de água é um direito humano, previsto por resolução da ONU, devido a sua essencialidade à vida. É um setor de infraestrutura que apresenta uma distorção econômica denominado monopólio natural, ou seja, não há concorrência na sua prestação. Dessa forma, seria bastante inadequado deixar o controle da prestação desse serviço nas mãos do setor privado, que objetiva unicamente o lucro, aqui sem juízo de valor algum, apenas uma constatação do fato. O debate vem sendo realizado de forma propositadamente superficial e, mais uma vez, os interesses corporativos se sobrepõem aos interesses populares desorganizados, desinformados e difusos. Cabe a nós, pesquisadores da área, tentar jogar um pouco de luz sobre um cenário de debate cada vez mais superficial, obscuro e totalmente polarizado ideologicamente.
Lucas Marques Pessoa
É mestre em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos pela UFMG.
Confira a nota-resposta da ABCON nos comentários abaixo.