Convidados Especiais | por Sergio Almeida
A qualidade do que a educação pública brasileira produz é sabidamente muito baixa. Menos de 4% dos alunos no fim do ensino médio, ou mesmo no fim do ensino fundamental, têm os conhecimentos adequados em português e matemática. A vasta maioria não consegue interpretar textos simples, tampouco resolver problemas com operações matemáticas básicas.
No ensino superior, a situação parece bem menos deficiente. Por duas razões.
Primeiro, porque as instituições públicas de ensino superior usufruem de mais dinheiro — gasta-se três vezes mais por aluno no ensino público superior do que no ensino público básico.
Segundo, porque o elevado grau de concorrência no processo de seleção de estudantes permite que as universidades “filtrem” para fora delas boa parte das deficiências da educação básica pública.
No ecossistema educacional do país, onde abundam desertos de mediocridade, as universidades públicas parecem oásis. Mas a imagem é ilusória. Nossas universidades públicas possuem uma miríade de ineficiências e distorções. Vistas isoladamente, essas ineficiências e distorções não parecem preocupantes, até porque só são melhor percebidas apenas quando o contexto de comparação vai para além das fronteiras domésticas.
O que fazer para melhorar a qualidade da educação pública básica e para melhorar o funcionamento das nossas as universidades?
Os protestos em favor da educação na semana passada reclamavam de cortes/contingenciamentos de gastos no setor, no que sugerem que a resposta para a pergunta acima necessariamente envolve mais transferência de recursos públicos para a área.
É um reclame legítimo, mas que faz ouvidos moucos para dois conjuntos de questões dentro dos quais estão algumas explicações e saídas para a baixa qualidade da educação no país.
Questões conjunturais e macroeconômicas
O primeiro conjunto diz respeito a três pontos ligados ao contexto macroeconômico e às características do setor educacional no país.
Falência fiscal do Estado
Primeiro, os cortes são um sacrifício em favor do futuro.
O governo brasileiro gasta mais do que arrecada há décadas. Nem sequer temos superavit primário desde 2014. As despesas têm sido pagas com emissão e rolagem de dívida. A dívida pública bruta saiu de cerca de 52% em 2010 para cerca de 74% do PIB em 2018.
Com limitada capacidade de se endividar e gastos primários em rota de crescimento, o governo está praticamente falido. Evidentemente, a situação requer apertos. Essa é, em essência, a razão dos cortes. É óbvio que cortar gastos em educação não vai contribuir para resultados desejáveis — deixando claro que nem todo resultado desejável tem, necessariamente, relação causal e linear com a quantidade de dinheiro gasto na área de educação.
Mas o corte deve ser visto em uma perspectiva intertemporal: não aceitar algum sacrifício nesse momento contribuirá para a falência fiscal do Estado e a possibilidade de cortes muito piores no futuro próximo. Não parece justo se portar como área intocável e pedir que apenas os outros façam sacrifícios.
Não somos ricos
Segundo, para um país com a renda per capita do Brasil, já gastamos bastante com educação.
Gastamos 6% do PIB com educação, acima da média (5,5%) dos países da OCDE (um grupo formado em sua maioria por países desenvolvidos). É óbvio que o valor absoluto do gasto por aluno é baixo quando comparado ao que gasta, por exemplo, Reino Unido, Alemanha e EUA, países com o triplo ou mais de renda per capita.
O fato é que somos um país relativamente pobre. É uma tautologia sem valor dizer que gastamos menos do que esses países. É por isso que a fração do PIB gasto em educação é informativa do esforço de gasto que o país faz na área; e já fazemos bastante esforço.
Ganhos de eficiência vs. Ganhos de mais gasto
Terceiro, precisamos explorar aumentos de qualidade fazendo melhor uso dos recursos que temos antes de colocar mais dinheiro no setor.
Com o Estado financeiramente quebrado e sem perspectivas de grande crescimento econômico, a única margem de ajuste factível para um aumento de qualidade na educação pública no curto prazo envolve melhorias na gestão.
Há bastante evidência empírica de que o modelo de gestão das escolas públicas e a formação e capacidade de liderança dos gestores da escola têm um impacto significativo na aprendizagem dos estudantes e na qualidade do ambiente escolar.
Parece razoável pedir que o setor público de educação como um todo demonstre que opera ao menos próximo da fronteira de eficiência que os recursos que dispõe permitem antes de demandar mais recursos da sociedade.
Questões de incentivo
O segundo conjunto de questões que os protestos ignoraram diz respeito à estrutura de incentivos prevalecente no setor. Incentivos pobres e distorcidos são os “pais” das principais ineficiências e distorções no setor. Destaco três aspectos defeituosos dessa estrutura.
Salários que não dependem de performance
Primeiro, o sistema salarial de escolas e universidades públicas, que estimula a mediocridade.
Dar ótimas aulas, oferecer feedbacks constantes para estudantes, manter cursos atualizados, publicar artigos científicos em periódicos internacionais de grande prestígio, tudo isso afeta a qualidade da educação. Mas produzir essas coisas requer esforço.
Se a estrutura de salários de professores não os recompensam de maneira proporcional ao desempenho nessas métricas que estão associadas a um sistema educacional de maior qualidade, o comportamento racional dominante dos agentes na área será o de fazer estritamente o esforço mínimo aceitável.
Os efeitos perversos de uma estrutura salarial isonômica — onde, por exemplo, professores de medicina ganham o mesmo que professores de economia — e independente de performance não param aí. Eles também contribuem para uma composição de quadros relativamente insatisfatórios ou que operam abaixo do seu potencial, na medida em que contribuem para (i) não atrair os professores relativamente mais produtivos da área, que acabam indo para o setor privado e (ii) para manter esforço na margem em níveis baixos. É um comprimido amargo de seleção adversa.
Governança e cobrança externa
Segundo, a falta de “accountability” de gestores e de governança externa nas escolas e universidades.
Escolas e universidades públicas recebem recursos do poder público de forma praticamente independente do quão relativamente boas ou ruins são. Não há punição ou recompensa por desempenhar acima, ou abaixo de certos parâmetros de qualidade. Tampouco grandes cobranças e monitoramento de órgãos externos.
É um arranjo defeituoso porque não incentiva a melhora de performance nas medidas relevantes de qualidade. Em sistemas educacionais de países mais desenvolvidos, o poder público define o conjunto dessas medidas de qualidade — o que está ligado aos objetivos do sistema educacional como um todo — e, mediante avaliação, transfere recursos para as instituições e agentes que ao menos cumprem requisitos mínimos de qualidade.
Esse é um modelo mais eficiente para o financiamento público da educação e até mesmo das atividades de ciência e tecnologia.
Modelo de financiamento
Terceiro, o financiamento das instituições de ensino superior.
Nossas universidades públicas dependem quase que completamente das transferências do contribuinte para pagar suas despesas. Não há qualquer esforço significativo de buscar fontes alternativas de receita.
Não surpreendentemente, quando as finanças do Estado estão em apuros, as universidades públicas padecem. É um modelo anômalo, pouco comum entre as melhores universidades do mundo. Não há necessidade de ser assim, sobretudo considerando a autonomia administrativa de que gozam as universidades públicas.
As possibilidades de fontes adicionais de receita são inúmeras: (i) leilão de espaços do campus para empresas interessadas na provisão de serviços para a comunidade (restaurantes, academias, farmácias, etc.), (ii) venda de serviços de consultoria e assessoria para empresas públicas e privadas, (iii) venda de cursos de curta duração e palestras para aperfeiçoamento profissional nas várias áreas do conhecimento, (iv) cobrança por espaços de estacionamento, (v) campanhas de arrecadação de doação entre ex-alunos e empresas.
Exploradas diligentemente, essas fontes alternativas de receita poderiam, conjuntamente, produzir um considerável incremento no orçamento das universidades. Há entraves legais a algumas dessas mudanças que precisariam ser removidos, mas muita coisa poderia ser feita dentro da autonomia de que goza as universidades públicas.
Deve fazer parte do redesenho do financiamento das universidades discutir a introdução de cobrança de mensalidades.
A cobrança se fundamenta, em essência, em um argumento econômico: ensino superior não é o que os economistas chamam de “bem público” — bens que, uma vez providos, podem ser consumidos por muitos, ao mesmo tempo, e cujo consumo por quem não pagou é difícil de ser controlado. Para bens com essas características, faz todo sentido que o Estado financie sua oferta. Não é o caso de educação superior.
Ensino público, pago e de qualidade
Há, contudo, um argumento econômico para subsidiar a educação: é o argumento de que a educação traz benefícios para a sociedade, para além daqueles que serão usufruídos pelos detentores do diploma de ensino superior, o principal deles sendo maiores salários em expectativa.
Mas oferecer subsídio para a área não se confunde com financiar a gratuidade. Tampouco é óbvio que esse subsídio/investimento governamental na área deve estar concentrado no ensino superior. Há bastante evidência empírica sugerindo que investimentos nos primeiros 5 anos da educação básica produzem retornos relativamente maiores em termos de desenvolvimento sócio-cognitivo, com efeitos positivos sobre resultados escolares posteriores, empregabilidade e renda futura.
Logo, são pouco relevantes as discussões sobre a estratificação socioeconômica dos estudantes das universidades públicas. Mesmo que as universidades públicas fossem ocupadas exclusivamente por estudantes pobres, ainda assim faria sentido econômico exigir, no futuro quando empregados e com renda adequada, repagamento do benefício que o diploma de ensino superior o concedeu.
É falsa, portanto, a ideia de que a cobrança de mensalidades nas universidades impediria o acesso dos que não podem pagar. A própria universidade, hoje, poderia operar como se fosse um emprestador. O pagamento dos demais poderia ajudar a compor programas de bolsa de até 100% e linhas de auxílio financeiro adicional para os mais carentes.
Captura
As soluções para nossos problemas educacionais são conhecidas. Há vasta literatura empírica para nos guiar. A dificuldade para implementar melhores estruturas de incentivo e práticas internacionais continua sendo o que sempre foi um dos grandes problemas da gestão pública: evitar que a regulação das estruturas de incentivo e do funcionamento do setor em geral seja capturada pelos grupos de interesse que se formam e se abrigam dentro das próprias instituições.
Sergio Almeida
É Professor Doutor do Departamento de Economia da FEA-USP. Possui Ph.D. em Economia pela University of Nottingham na Inglaterra. Foi Research Manager para a América Latina do Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab (J-PAL), um centro de pesquisas no MIT focado em métodos experimentais de avaliação de impacto de políticas públicas, e membro do Centre for Decision Research and Experimental Economics (CeDEx/Uni of Nottingham).