Mais um texto sobre André Lara Resende…

Desde que André Lara Resende publicou ‘A crise da macroeconomia’ no Valor Econômico, o texto incita réplicas, tréplicas e n-éplicas. Não me resta dúvida de que, entre seus opositores e apoiadores, o melhor lugar a ser ocupado é: o de proprietário de algum veículo de mídia.

Aliás, essa não é a única alternativa para colher os rendimentos da controvérsia criada por Lara Resende. Aproveitaria a oportunidade publicitária, vender algum livro sobre as três letras malditas — MMT — não me parece mau negócio. Ainda mais se o consumidor em potencial é algum heterodoxo desavisado. Apenas um devaneio, permitam-me retomar o foco.

As ideias de Lara Resende, quando discutidas por alguns, sofrem uma espécie de “marxização”. Isso é, muito se fala sobre o que ele quis dizer e pouco se fala sobre o que escreveu de fato. Contudo, convenhamos que o economista brasileiro se expressa com muitíssimo mais clareza que o pensador alemão.

Creio que a dificuldade maior é entender o trajeto do raciocínio proposto. Primeiro, numa perspectiva de teoria macroeconômica, pode-se dizer que a tese central de Lara Resende é, nas palavras de Samuel Pessôa: “um Estado que emite dívida em sua própria moeda não enfrenta restrição financeira, mas somente a restrição de recursos da sociedade.”

Num segundo momento, essa tese (juntamente às teses adjacentes) se traduz numa proposta de condução da política macroeconômica, ainda segundo Pessôa: “Manter a taxa de juros baixa — de preferência abaixo da taxa de crescimento da economia — e empregar a política fiscal para regular a demanda agregada.”

Contudo, aplicando-se essa política macroeconômica num cenário hipotético (carinhosamente apelidado de “Lula dourado”), onde a economia brasileira cresce, em termos reais, a 4% e sob pressão inflacionária que implica juros reais superiores a 6%, o que acontece? Dadas as condições do “Lula dourado”, o banco central coloca a taxa de juros real abaixo de 4% e o ministro da Fazenda faz a política fiscal condizente, que é: ajuste fiscal, assim como defendia a equipe de Palocci.

Obviamente, as reflexões de Lara Resende não se inspiram na mais recente época de prosperidade da economia brasileira. O fato estilizado em questão é a economia desenvolvida que, no pós-crise de 2008, encontra-se praticando taxas de juros próximas a zero, com dívida pública altíssima e poucas perspectivas de crescimento. Aliás, esses são temas intensamente discutidos por Olivier Blanchard e Larry Summers. Parece que o brasileiro dialoga muito mais com lá do que com cá.

O terceiro ponto do trajeto é a história do pensamento econômico brasileiro. Revisitando o debate entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen, o liberalismo ilustrado do primeiro foi derrotado pelo nacional-desenvolvimentismo do segundo. Foi assim que o protagonismo estatal na economia conquistou os corações e as mentes dos políticos e da sociedade na década de 40, recorda Lara Resende em Juros, Moeda e Ortodoxia.

A derrota do liberalismo ilustrado em 40, propõe o autor, foi determinada principalmente pelo dogmatismo monetário. A política monetária contracionista, aplicada com péssimo timing político e quiçá nem com o melhor dos diagnósticos econômicos, afastou os liberais ortodoxos do poder por décadas. Hoje, aponta Lara Resende, o dogmatismo fiscal seria o suicídio da tecnocracia liberal que está no governo.

Contudo, isso não sugere adesão ao populismo econômico. Pelo contrário, André adverte que sua tese central é deveras sedutora ao mundo político. Por essa razão, seria necessário que os liberais tomassem as rédeas da política fiscal para si próprios, em defesa da democracia liberal.

Num quarto momento, essa arrojada mudança de orientação por parte dos liberais tem base na filosofia política. Especificamente, nos adeptos da doutrina liberal vista com simpatia por Lara Resende: o ordoliberalismo. A bem-sucedida reconstrução alemã, após a Segunda Guerra Mundial, é atribuída ao “choque” promovido pelos economistas ordoliberais.

O grupo ignorou as recomendações da ortodoxia keynesiana e adotou a promoção da competição como facilitadora da prosperidade naquela sociedade. Dessa forma, caberia ao Estado assegurar a competição sadia, com a devida inteligência para retirar a si próprio do jogo. Trata-se de ditar as regras e não de jogar.

Os valores dessa doutrina se manifestam naquilo que Lara Resende propõe para a economia brasileira: estímulo aos investimentos e promoção da iniciativa privada, almejando o aumento da produtividade e da equidade. Isso seria posto em prática através da reformulação dos sistemas tributário, monetário e comercial. Por sua vez, a política fiscal — nas mãos certas — deveria ser resguardada por imprescindíveis mecanismos de controle e avaliação dos custos e benefícios dos investimentos públicos. O Estado, cuja inspiração é ordoliberal, seria o último guardião da restrição de recursos da sociedade.

É assim que chegamos ao quinto e último ponto, as consequências políticas da teoria macroeconômica (supostamente) obsoleta. O desarranjo econômico, quando prolongado, desemboca no populismo que alcança o poder pelo voto. Num círculo vicioso, o ressentimento se prolifera, as instituições são desmanteladas e o autoritarismo toma forma. Sinistro, não é?

Toda essa controvérsia não é novidade, afinal, o André já causou repercussão quando levantou a hipótese da dominância fiscal para o caso brasileiro. Todavia, trata-se da mesma pessoa que estava na equipe do Plano Real. Tudo bem, talvez sem a mesma paciência com o colega Edmar Bacha. Menos ainda com o “pai adotivo” do mais bem-sucedido plano monetário da história nacional, Gustavo Franco. Enfim, permitam-me retomar o assunto em questão.

Talvez a maior dificuldade seja compreender o trajeto das ideias de Lara Resende em seus diferentes pontos. Samuel Pessôa, por exemplo, aborda o primeiro: teoria macroeconômica. Alexandre Schwartsman (com mão e cabelo invisíveis), discute o segundo: política macroeconômica, especificamente, fiscal. Pouco vi sobre o terceiro, quarto e quinto, que são, respectivamente, pensamento econômico brasileiro, filosofia política e consequências políticas da teoria macroeconômica. Isso é, de forma minimamente aceitável, porque o tal 247 é intragável.

Aliás, heterodoxos: argumento de autoridade não vale, tá? “O André Lara Resende falou!” E daí? Ele também disse que é a favor da reforma da Previdência e que defende a privatização de todas as empresas estatais. Não conta pra ninguém, tudo bem? Aos ortodoxos, há quem diga que de nada vale estar certo (?) na teoria e praticar os melhores métodos se, ainda assim, a batalha pelos corações e mentes da sociedade brasileira é perdida. Sábio mesmo era Milton Friedman. Parafraseando-o, “We are all MMTers now”.

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.

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