Mercados financeiros e as relações sociais da economia

Marcelo Lourenço Filho

Desde o momento em que as primeiras sociedades perceberam que os recursos de que dispunham na Terra eram escassos, a Economia passou a ser a mais fundamental das ciências. De lá para cá, independentemente do regime político, da matriz institucional ou do ensejo histórico vigentes, o problema fundamental das sociedades têm sido um só: a alocação de recursos escassos entre fins alternativos.

Na prática, a questão se reflete em o que deve ser feito e quando deve ser feito. Isto porque constantemente enfrentamos dilemas (ou tradeoffs).  Da mesma forma que você, leitor, que, ao se dedicar a este texto, estará necessariamente abrindo mão de fazer qualquer outra coisa, como ouvir música ou tomar sorvete com os amigos, um empresário não pode dedicar, simultaneamente, os mesmos tempo e capital à produção de dois artefatos distintos.

Toda e qualquer escolha dos agentes econômicos tem um custo de oportunidade. Em macroeconomia, uma das mais famosas fronteiras (curvas) de possibilidade de produção é a do guns versus butter. O que deve ser produzido em maior quantidade, armas ou manteiga, visto que um aumento na produção de um ocorre em detrimento da produção do outro?

E este problema consoante fora evidenciado pela Revolução Marginalista, no século XIX, não é exclusivo das sociedades capitalistas. Sobre isso, diz o austríaco Friedrich von Wieser: “Mesmo em uma comunidade ou estado cujos assuntos econômicos fossem ordenados por princípios comunistas, os bens não cessariam de ter valor. Ainda existiriam desejos, como em outro lugar; os meios disponíveis ainda seriam insuficientes para a sua satisfação plena; e o coração humano ainda penderia a sua posse.” [1]

Muito menos os juros são um fenômeno exclusivo do capitalismo. O comportamento humano tem como uma de suas características mais fundamentais a maior valoração de bens presentes em relação a bens futuros. Naturalmente, bens futuros estão sujeitos a uma espécie de “desconto” quando comparados a bens presentes. A este “desconto” comumente é dado o nome de juro.

O economista Murray Rothbard explica: “Como as pessoas sempre preferem ter o dinheiro agora ao invés da perspectiva de receber a mesma quantia em algum momento futuro, o bem futuro sempre exige um prêmio no mercado em relação ao bem presente.  Este prêmio é a taxa de juros, e seu valor irá variar de acordo com o grau em que as pessoas preferem o presente em relação ao futuro, ou seja, o grau de suas preferências temporais.” [2]

É impossível abolir este fenômeno, visto que é natural que as pessoas optem por receber uma mesma quantia hoje do que recebê-la em um ano, mas tergiversem ante a proposta de receber o dobro da quantia após dado período. Pode parecer inusitado, mas até mesmo o planejador central precisa lidar com a preferência temporal. Sobre a universalidade do fenômeno, diz Ludwig von Mises: “Também numa sociedade socialista há que se considerar o fato de que um pão que só possa ser consumido daqui a um ano não pode satisfazer a fome hoje” [3].

Dados estes dois fenômenos (a alocação de recursos escassos e a preferência temporal dos agentes econômicos), surgem, no contexto das economias de mercado, os chamados “mercados de empréstimos”, cujo objetivo é colocar fundos emprestáveis à disposição de industriais, empresários e comerciantes em geral.

A ideia é bastante lógica: na sociedade existem tanto indivíduos que estão dispostos a abrir mão de parte de sua renda no presente na expectativa de ganhos e consumo futuros, como existem aqueles que demandam fundos no presente para realizar investimentos e, para tanto, estão dispostos a pagar o custo de oportunidade da quantia emprestada. É interessante notar que, muitas vezes, a demanda destes últimos designa-se a produzir bens destinados justamente a satisfazer a demanda futura dos primeiros.

Antigamente, era de praxe que os mercados de empréstimos fossem divididos em mercado financeiro e mercado de capitais. Os mercados financeiros seriam aqueles que operam a intermediação do crédito de curto prazo, como com operações monetárias, enquanto que o mercado de capitais seriam os destinados a operações de longo prazo [4], como títulos públicos, debêntures, compra e venda de ações, seguros e previdência.

Modernamente, essa definição mudou (ficando as operações de crédito ao público, por exemplo, a cargo de bancos comerciais, enquanto que o dito “mercado financeiro” também opera debêntures e títulos), porém a base continua a mesma: as transações ocorrem de forma a alocar os recursos de acordo com as preferências temporais e disposição a pagar dos indivíduos.

Pode parecer contraintuitivo, mas não é o mercado financeiro que gera a taxa de juros a partir de um “equilíbrio” entre oferta e demanda por empréstimos. “Ao contrário”, diz Mises, “a função do mercado de empréstimos (…) consiste precipuamente em ajustar as taxas de juros estabelecidas nas transações financeiras à diferença de valor entre os bens presentes e os bens futuros.” [5]

Os mercados financeiros também foram importantes para quebrar determinados paradigmas e ideias tradicionais. Uma delas é a ideia de que na economia, os ricos são os credores, e os pobres, os devedores. No século XX, alguns autores chegaram a defender o inflacionismo tomando esta ideia como escudo: ora, se num ambiente de difícil correção monetária a inflação tende a prejudicar os credores e a beneficiar os devedores, então ela pode ser amplamente benéfica. A inflação, além de permitir que os políticos gastem mais, ainda seria um mecanismo de justiça social!

Esta ideia, porém, para o desalento da classe burocrata, é bastante equivocada. Primeiro porque ignora que os credores, diante de um cenário plúmbeo e indecifrável de instabilidade, certamente não sujeitariam suas poupanças pessoais à depreciação inflacionista. Com sorte, se não trocassem suas reservas pelo consumo presente, elevariam consideravelmente a exigência de retorno para disponibilizá-las ao mercado. De uma forma ou de outra, os investimentos da iniciativa privada seriam consideravelmente reduzidos.

Além disso, é ingênuo pensar em ricos e pobres como sendo estes os devedores e aqueles os credores. Talvez este já tenha sido o arranjo vigente, no entanto, nas palavras de Mises, “nos dias de hoje, dias de debêntures, títulos, bancos de investimento, seguradoras e previdência social, as coisas são diferentes. Os ricos como já investiram seu dinheiro em fábricas, armazéns, residências, propriedades rurais e ações, frequentemente são mais devedores do que credores. Por outro lado, os pobres – exceto os agricultores – mais frequentemente são credores do que devedores.” [6]

Neste ínterim, é interessante notar que os mercados financeiros desafiam até mesmo a concepção marxista de sociedade: se há somente os capitalistas (detentores dos meios de produção) e os proletários (subordinados ao capital), onde exatamente se encaixaria um trabalhador que, com o excedente de sua renda, compra ações de uma determinada empresa, isto é, parcelas do seu capital social que lhe conferem, inclusive, direito a dividendos? Sendo ele dono de uma parcela (mesmo que mínima) da empresa, ele é o explorado ou explorador?

Ademais, é curiosa a percepção errônea que, em geral, os mercados financeiros transmitem. Em um primeiro momento, pode parecer que se trata de um complô de homens estultos, egoístas e antiéticos que buscam, desatinadamente, ganhos improváveis. Porém, após uma análise mais equilibrada, percebe-se que, na verdade, é um grande meio através do qual as pessoas trocam recursos intertemporalmente, buscando seus próprios interesses. Mais curioso ainda é notar que, de forma não intencional, estas pessoas acabam contribuindo (e muito) com a sociedade, uma vez que seus recursos serão convertidos em investimentos que gerarão emprego, renda e produtos mais baratos e de qualidade. É o caso clássico de algumas benesses do mercado que partem da ação humana, mas não da intenção humana.

Falemos agora de outra questão que tange os mercados financeiros: a liquidez.

Liquidez é a capacidade de um ativo converter-se em poder de compra. Se valor do ativo A poderá ser recuperado em 30 dias, enquanto que o ativo B, somente em um ano, diz-se que a liquidez de A é maior que a de B. Se este ativo é uma nota de dinheiro, ele tem, teoricamente, liquidez total. Ativos de maior liquidez tem menor rendimento que os de menor liquidez, dado o tradeoff entre risco e retorno (se um agente está disposto a correr mais risco numa determinada operação, é bastante razoável que ele exija um retorno maior do que em operações de risco menor).

Existe um problema bastante sério relacionado à liquidez, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Pela instabilidade político-econômico que estes historicamente apresentam, os cidadãos acabam optando por menores retornos (ou, muitas vezes, retornos nulos) em troca de maior liquidez. Por cogitarem necessidades pessoais próximas, ou a ação confiscatória de um governante, são instados a deixar seu dinheiro na segurança de cadernetas de poupança ou como depósitos à vida. Sua expectativa é clara: caso haja algum problema, é possível resgatar (ou transferir) o dinheiro imediatamente.

(A realidade, porém, opõe-se a essa esperança. Dado o sistema de reservas fracionárias e o mecanismo do multiplicador bancário, é amplamente sabido o que é provável que ocorra caso todos os usuários de bancos comerciais decidam, ao mesmo tempo, resgatar os seus recursos.)

E a situação acima descrita evidencia um dos problemas mais básicos dos países mais pobres: a falta de poupança. Sabe-se que um dos pilares do desenvolvimento é a poupança privada, a qual se refletirá em formação bruta de capital, isto é, investimentos. E o conceito básico de poupança é a renda de que as famílias abrem mão no presente para viverem melhor no futuro. Alguns países, cuja renda individual flutua em torno do nível de subsistência do cidadão – às vezes nem isso -, realmente tem um problema sério no que diz respeito à falta de dinheiro para poupar. É o dito ciclo vicioso da pobreza: o país não poupa porque é pobre e é pobre porque não poupa.

Em países emergentes, como o Brasil, o problema, de forma geral, não se relaciona com a falta de recursos excedentes, mas com o direcionamento ineficiente destes. Quando as famílias optam por não abrir mão desse excedente por determinado período de tempo, por quaisquer motivos que sejam, mantendo-o em conta corrente ou mesmo debaixo do colchão, elas não canalizam esses recursos para fins mais produtivos e que contribuirão para com os investimentos na sociedade. Elas somente retardam um consumo presente, trocando-o por um consumo menor no futuro (vide a inflação do período).

No Brasil, a caderneta de poupança, que é, de longe, a forma mais popular de “investimento”, não foge a esta realidade. Em 2015, ela apresentou resultados bastante questionáveis àqueles que nela deixaram seus recursos. Dada uma inflação de 10,67% e um rendimento anual de 8%, quem abriu mão de seu capital por um ano teve um rendimento real de -2,67%. Não tratamos aqui de um investimentos de retorno baixo, mas de uma aplicação que resulta em prejuízos.

Os mercados de títulos, certificados bancários ou fundos previdenciários, por outro lado, trazem retornos bem mais expressivos mesmo para os investidores de perfil conservador (que é majoritário no Brasil), porém, em contrapartida, exigem que o ativo tenha menos liquidez. É preciso, então, que o indivíduo esteja disposto a abrir mão de seu dinheiro por mais tempo e, para que isso ocorra em maior escala, ainda mais no Brasil, os desafios são imensos.

Isto traz algumas questões importantes sobre a economia brasileira contemporânea. Há algumas décadas o Brasil teve ganhos importantes, tais como o equilíbrio institucional, a estabilidade da moeda e a responsabilidade fiscal, os quais agiram muito positivamente na imagem externa do país perante o mercado. No entanto, como já foi dito, o perfil do investidor brasileiro continua parcimonioso – e a ação recente de governos irresponsáveis não tem ajudado para a mudança deste perfil.

Apesar disso, o próprio fato do país mostrar-se resoluto e intolerante com governantes desatinados é um bom indicativo. Além disso, é imprescindível trazer à população em geral o conhecimento sobre a importância dos mercados financeiros. Se é necessário que haja trocas intertemporais de recursos, é fundamental não só a compreensão da importância desse processo via forte educação financeira, mas também a segurança jurídica e a estabilidade econômica, os quais garantirão ao investidor que seus recursos estão em boas mãos.

Isto, porém, é um construto. Pode levar tempo, mas um povo que deixa para trás determinados vícios e avança no conhecimento de sua própria natureza está fadado ao progresso. Estamos a caminho, um dia chegaremos lá.

Marcelo Lourenço Filho é graduando em Economia na FEA-RP/USP, é Coordenador de Eventos no Clube de Mercado Financeiro e Diretor de Projetos no Clube de Liberdade Caiapós (ambas entidades da faculdade).

  Referências [1] WIESER, F. Natural Value (1889) In: BARBIERI, F. A Economia do Intervencionismo (2013) [2] Rothbard, M. Depressões econômicas: causa e cura. Disponível em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=228 (acesso em 14/10/2016) [3] Mises, L. Intervencionismo, uma análise econômica (1998) [4] É aqui que se iniciaria, por exemplo, os percursos indiretos (em inglês, roundaboutness), processo pelo qual a taxa de juros (dada, por exemplo, pela quantidade de poupança disponível) determina a produção de bens de capital que produzem outros bens de capital. [5] Mises, L. Intervencionismo, uma análise econômica (1998) [6] IDEM.
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