Elinor C. Ostrom: A Tragédia da Tragédia dos Comuns
O Prêmio Nobel de Economia de 2009 foi particularmente interessante, pois foi um dos mais irônicos desde o partilhado entre Gunnar Myrdal e F.A Hayek em 1974.
Os laureados daquele ano eram Elinor Ostrom e Oliver Williamson; por suas contribuições ao entendimento econômico da governança e sua aplicação. Ambos os autores investigaram a forma como as regras moldavam os mais diferentes ordenamentos sociais e suas implicações na eficiência econômica dos mesmos, porém eles partiram de perspectivas diferentes. Enquanto Williamson deu importância ao papel das hierarquias na governança das instituições, Ostrom foi no exato caminho oposto.
Muito mais do que ter sido a primeira mulher a ganhar um prêmio nobel de economia, Elinor foi fundamental para mudar nossa visão acerca das instituições e seu estudo.
A visão que se tinha ( e muitos no Brasil ainda tem) das instituições em seu sentido econômico é moldada pela clássica definição dada por Douglas North (1990). Segundo North, as instituições são as regras do jogo, tanto as formais ( delimitadas pelas autoridades) como as informais ( dadas por convenções sociais, como no caso da cultura) e também as suas características de eficiência. Juntas, essas regras definem a forma como o jogo econômico é jogado, como as escolhas são delimitadas pelos agentes econômicos racionais.
Todavia, a definição de North, apesar de didática, é falha ao se notar o fato de que o jogo econômico pode acontecer na ausência de regras. Segundo a definição clássica, se as regras do jogo não estiverem claras, se os agentes não tiverem conhecimento perfeito sobre elas, então não existiria atividade econômica, pois a incerteza resultante elevaria os custos de transação dos direitos de propriedade para além de seus benefícios marginais.
Essa não era a visão que Ostrom tinha das instituições. Para ela as instituições têm duas dimensões que não podem ser ignoradas. A primeira é que elas são configuracionais, dependentes do contexto socio-econômico em que surgem, e não podem ser tomadas isoladamente. Segundo é que instituições não são regras seguidas a risca. As instituições não afetam diretamente o comportamento, mas sim a estrutura que delimitará os possíveis resultados que irão emergir das interações entre os agentes. O estudo e definição individual das instituições, retiradas do sistema socio-econômico que integram, não é efetivo na medida em que a consequência de qualquer regra depende do tipo de ambiente em que ela está inserida e, como regras especificam o conjunto de resultados possíveis, há regras que proíbem e outras que permitem uma dada ação em diferentes circunstâncias. Assim, a delimitação do comportamento ocorre ex post a delimitação da ação (Ostrom 1987)
Em certo sentido o que Elinor fez foi resgatar a linha de pensamento dos sociólogos institucionalistas, como Émile Durkheim, Max Weber e John R. Commons. Para eles, as normas sociais eram regras de delimitação do comportamento individual que eram dadas por um contexto social específico e moldadas por condições ambientais específicas; como guerras, geografia, clima, interação com outros grupos, etc.
Essas regras não eram necessariamente conhecidas pelos indivíduos, mas elas eram incorporadas em seu comportamento por meio das diferentes interações de “solidariedade orgânica e mecânica” presentes dentro da sociedade; como as relações familiares, comércio e relações de trabalho. Por meio dessas normas a sociedade criava uma ordem social orgânica em constante mudança à medida que as condições iniciais fossem mudando ou, na linguagem dos marxistas, conforme a mudança dos processos de produção.
Para mostrar a aplicação dessa sua visão das instituições, Ostrom investigou o problema de coordenação social colocado pelo biólogo americano Garrett Hardin (1968) chamado de “A Tragédia dos Comuns”.
Em sociedades tradicionais, sem um grande desenvolvimento de instituições normativas como o estado de direito ocidental, muitas vezes o custo de proteção de direitos de propriedade é maior do que os benefícios auferidos da manutenção desses direitos e os custos de transação positivos derivados disso fazem com que propriedades sejam deixadas livres para uso público (Barzel 1997). Na Idade Média europeia um exemplo disso eram os campos comuns ( do inglês common fields); terras que geralmente ficavam nas fronteiras dos domínios feudais e que eram consideradas custosas demais pelo senhorio para protegê-las eram deixadas para uso público. Nessas terras os plebeus podiam plantar, colher, caçar e criar animais de maneira livre ( Clark e Clark 2001). Todavia, essas terras configuravam um clássico problema de definição de direitos de propriedade sobre a utilização de um dado recurso, como definido por Coase (1960).
Para ilustrar esse problema vamos tomar um experimento mental. Imagine uma sociedade primitiva. Nela existe duas pessoas e ambas utilizam um lago comum para pesca. Vamos dizer que ambos vão expandir suas atividades até o máximo que conseguirem; ou seja até que exista um equilíbrio entre maximização de peixes pescada entre ambos os indivíduos.
Porém ai um dos indivíduos quer, mesmo nesse cenário, pescar mais peixes. Uma vez que a quantidade de peixes é limitada, cada ganho marginal do indivíduo que pescar mais é um custo marginal para o outro. Caso o custo marginal causado para o outro indivíduo supere o benefício líquido conseguido com a pesca adicional, então esse sistema é socialmente instável, pois as trocas econômicas nessa situação não são ótimas. O indivíduo estaria ganhando às custas do outro sem sofrer os custos de sua ação.
A forma ótima da solução desse problema é geralmente a delimitação da propriedade dos recursos e o estabelecimento de direitos de propriedade claros. Uma vez que os indivíduos possuam conhecimento claro sobre quem é proprietário sobre os recursos, será mais fácil a transação de direitos de uso sobre essa propriedade e a proteção dessa propriedade. Se o lago e seus peixes pertencem a um indivíduo X, então um outro indivíduo Y poderá pagar para poder pescar naquele lago compensando X pelos eventuais custos marginais da pesca. Caso Y tente violar a propriedade e pescar no lago jogando os custo de seu uso para X, então esse poderá reclamar seu direito de propriedade com as autoridades legais e essas poderão arbitrar claramente o conflito ao saber a quem os recursos pertencem legalmente, impondo uma sanção sobre o infrator.
Assim, a solução clássica para a tragédia dos comuns é a privatização da propriedade pública. Isso ocorreu na Grã-Bretanha, onde os commons foram privatizados e tornados nos enclosures ( cercamentos) para a produção de insumos para indústria nascente e o estado de direito inglês adquiriu corpo para a proteção dessas novas propriedades.
Contudo, essa não era a visão de Elinor Ostrom. Em seus estudos de campo em sociedades tradicionais, como aquelas da Inglaterra medieval, ela registrou que a administração dos Commons não era ineficiente como prevista pela tragédia dos comuns. Segundo Ostrom (1990), os direitos de propriedade sobre dados recursos não precisavam ser definidos por uma autoridade externa em um processo de privatização, pois eles já eram bem definidos pelas normas sociais dessas comunidades. Cada indivíduo nascido nessas sociedade aprendia tacitamente, por meio das relações com os outros, os limites das propriedades de cada um, a quem pertencia o que e como as relações eram estabelecidas. Mesmo sem regras claras, cada um agia sabendo como deveria agir.
Elinor mostrou que para a criação de uma ordem social estável, de instituições funcionais, não era necessário estabelecer relações verticais hierarquizadas, com uma judicialização de todas as relações sociais por meio do estado intervindo na delimitação da propriedade de tudo e servindo como árbitro de todos os problemas. As relações poderiam se dar de forma horizontal, com as pessoas negociando de igual para igual com base em tradições comuns de sua comunidade. As pessoas podem se organizar, formar laços e estabelecer regras elas mesmas que gerem uma coordenação ótima na alocação de recursos.
Como Weber já tinha colocado antes dela, a intervenção judicial nas relações sociais, como na delimitação de direitos de propriedade, só é necessária quando uma sociedade está em um processo de decadência de suas normas sociais ( tradições e cultura). Com o aumento da complexidade de certas relações ( formas de produção mais complexas), as pessoas deixam gradualmente a solidariedade orgânica e passam a interagir mais por solidariedade mecânica ( Weber 1905).
Mas relações orgânicas ainda podem atuar de forma eficiente em nível local e o pressuposto de que é necessário intervenção estatal em todos os casos pode causar problemas ainda maiores, na medida em que irá alocar os direitos de propriedade de uma forma a discriminar pessoas de maneira não ótima. Ostrom e Whitaker (1973), por exemplo, mostram que polícias locais estão em melhor controle da comunidade e tendem a utilizar a forças de maneira mais eficiente do que quando a polícia é federalizada, uma vez que essa possui o incentivo perverso de não ter que prestar contas diretamente à comunidade que está protegendo. Um policial federal que mata um membro inocente de uma comunidade não sofrerá os mesmos custos por essa morte do que um policial que mora naquela comunidade e nem terá a moral para impor a sanção quando ele for culpado.
Ostrom reintroduziu a cultura e o estudo sociológico de campo de volta na economia. Não era somente um bom estado de direito com uma força policial eficiente que poderia constituir uma ordem social eficiente, mas também as sociedades indígenas na Amazônia ou mesmo as outrora menosprezadas sociedades feudais. Para os recursos serem utilizados de maneira ótima, sem desperdício e com uma utilização racional, não era mais necessário privatizá-los ou entregá-los para empresas estatais. Os nativos locais sabem como preservar seus recursos melhor do que qualquer tecnocrata em uma cidade distante, que dificilmente sabe da totalidade das condições daquele local.
De certa forma, essa perspectiva colocou um grande desafio às tentativas de um planejamento de desenvolvimento econômico. Para um seguidor de Ostrom, nenhum planejador central teria conhecimento para saber as condições envolvidas na administração de um recurso em um local específico ou para moldar uma comunidade segundo um plano diretor ou algo do tipo. As tentativas de fazer isso geralmente criariam instituições informais ineficientes e perversas, como conflitos entre grupos étnicos diferentes por recursos ou colapso de ligações sociais; como no caso da intervenção humanitária nas Ilhas Nicobar.
Mas ela também mostra a riqueza e singularidade de cada civilização. A maior lição que pode ser tirada das obras de Ostrom é que toda instituição é eficiente, por mais moralmente errada que seja, e possui um papel dentro de sua sociedade. Como Leeson (2017) mostrou, mesmo instituições bizarras aos nossos olhos, como a venda de esposas na Inglaterra vitoriana ou a prisão de baratas na Itália renascentista, tem sua racionalidade econômica. Outros, como Harris (2018), mostraram que mesmo casos de ordens sociais que seriam consideradas ineficientes por problemas como o free ride (como no caso dos sites de pirataria na internet; e.g Libgen), ainda assim elas sobrevivem e continuam existindo graças a suas regras informais; contrariando a lógica comum, uma vez que dado o free ride logo os indivíduos parariam de contribuir com essa dada relação por falta de benefícios líquidos.
Oliver E. Williamson: A Importância das Organizações
No dia 21 de Maio de 2020, o prêmio nobel de economia Oliver E. Williamson faleceu em decorrência de uma pneumonia. Sua morte foi uma perda gigantesca não somente para a economia, mas para todas as ciências sociais. Williamson foi até não muito tempo atrás o cientista social mais citado do mundo, com contribuições desde as ciências administrativas até sociologia política e o direito. Ele foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento do que viria a ser a Nova Economia Institucional, foi um dos fundadores do Ronald Coase Institute para esse fim e modificou radicalmente a forma como os economistas vêem o mercado.
Todavia, no Brasil sua obra ainda é pouco explorada. Muitos desconhecem suas contribuições fundamentais para nossa compreensão do funcionamento da sociedade. Por essa razão, irei explicar brevemente a razão de Williamson ser tão admirado.
Contudo, para explicar sua contribuição temos que entender a forma como os economistas até então enxergavam o funcionamento dos mercados, particularmente a forma como eles viam as firmas.
A teoria neoclássica da firma é um construto mental segundo o qual o funcionamento e a estrutura organizacional interna das instituições podem ser negligenciados. O economista neoclássico não se interessa pelo arranjo interno das instituições, mas sim pelo que ocorre nos mercados externos a ela.
Assim, o economista neoclássico busca entender como recursos são alocados entre mercados, mas não como os mesmos são alocados dentro das firmas. Ele não se interessa por como se dá as relações contratuais entre empregadores e trabalhadores, como insumos são negociados com fornecedores, como esses mesmos insumos são alocados de setor para setor de uma mesma empresa ou como o processo de alocação e produção é organizado. Ela é apenas uma função de produção que, de alguma forma, age dentro dos mercado transformando inputs em outputs.
Segundo essa teoria, dado um mundo onde os empreendedores possuem informação perfeita, as relações de contrato ou outras forma de transação dentro da firma seriam insignificantes para análise, pois os contratos sempre seriam cumpridos.
Os gestores têm conhecimento acerca de todos os aspectos do comportamento de fornecedores e trabalhadores, de forma que falhas contratuais seriam impossíveis. Dado tecnologias presentes, preço de insumos, preferências de consumo e etc, a firma simplesmente usaria tais dados para maximizar seu lucro dado uma linha de restrição orçamentária. Assim, a firma não seria mais que um conjunto de equações de dotação de fatores e custos em um simples problema de cálculo. Contudo, isso é algo bem distante do mundo real e foi justamente isso que Williamson criticou.
Sua crítica começa ao se analisar a visão de racionalidade de Herbert Simon. Segundo Simon, o pressuposto de racionalidade completa da economia neoclássica deveria ser substituído pelo de racionalidade limitada, segundo o qual os agentes econômicos tentam ser racionais, mas apenas o conseguem de modo limitado. O agir econômico estaria delimitado pelos limites da capacidade de conhecimento humana e suas limitações na obtenção e decodificação de informações.
A principal consequência da adoção do pressuposto da racionalidade limitada de Simon é o reconhecimento de que contratos complexos (como contratos financeiros ou contratos de trabalho) são, inevitavelmente, incompletos. Mesmo se fosse possível se atribuir conhecimento equitativo das partes de um contrato, como um contrato de trabalho, acerca do contrato em si, ainda assim tal não impediria o surgimento de problemas pós-contratuais.
As partes contratantes estão sujeitas a problemas de assimetria de informação e racionalidade limitada no momento de formulação contratual; um credor, por exemplo, não sabe de todos os aspectos da vida da pessoa para quem ele está emprestando seu dinheiro e suas reais condições de pagamento futuro, de forma que ele não tem como medir o risco real de um dado empréstimo. Surge então o que Williamson definiu como o Problema do Oportunismo.
Devido às falhas na formulação de todos os termos de um contrato (impossibilidade de se prever em momento de formulação todas as nuances da transação ali firmada) e em face de choques imprevisíveis para os quais contratos incompletos não conseguem se adaptar de maneira prévia, as partes do contrato afastam-se daqueles termos firmados previamente e passam a ser guiados não mais pelos princípios das normas contratuais estabelecidas anteriormente, mas por considerações pragmáticas e de interesse pessoal.
Um credor que vê seu capital aparentemente ameaçado nas mãos de um mutuário irresponsável, pode solicitar sua falência sem saber previamente qual seu plano empresarial de maneira completa; aquela suposta ameaça pode ser somente uma consequência temporária de um plano empresarial que dê frutos em longo prazo. Em face desse problema de oportunismo, os custos de transação tendem a aumentar e a degenerar a estrutura contratual erguida ex ante.
Os agentes, tendo em isso em mente, seja devido à transmissão de informações entre terceiros ou por experiência própria, irão tentar solucionar esse problema de oportunismo para diminuir os custos de transação e tentar tornar o contrato viável. De tal forma, as partes contratuais tendem a identificar possíveis riscos contratuais, modificar os mecanismos que regem tais riscos, elaborar os novos mecanismos que serão inseridos ex ante no contrato, inserir salvaguardas contratuais e, em último caso, optar por alguma forma de hierarquização.
A reação natural de muitos é pensar que a melhor forma de se lidar com o oportunismo contratual é se estabelecer uma salvaguarda hierárquica externa às partes, um árbitro. Seguindo a linha de raciocínio de Akerlof e Arrow, uma vez que não haveria possibilidade de se estabelecer um conhecimento equitativo entre as partes do contrato, a melhor solução seria colocar um agente externo ao processo de produção do contrato para monitorar o cumprimento dos termos estabelecidos. O governo, por exemplo, atuaria como árbitro externo e hierarquicamente superior às partes e decidiria um caso de conflito caso esse emergisse do processo. Assim, a reação automática caso algo dê errado é a correção dos desvios por vias de novas regras e controles impostos de cima para baixo.
Porém, isso segundo Williamson é uma solução extremamente simplista e irreal dado o problema de racionalidade limitada enfrentado por firmas e outras instituições. Caso tal solução fosse empregada, uma empresa precisaria de monitores contratuais para cada uma de suas transações. Ela precisaria judicializar cada uma de suas relações e precisaria de um árbitro para cada uma delas. Contudo isso não ocorre, a maior parte das relações das firmas não precisam de uma monitoria ou judicialização na grande parte do tempo e, se tal fosse empregado, seria sub-ótimo uma vez que o empreendedor precisaria despender recursos( como tempo) resolvendo questões puramente burocráticas quando ele não precisaria fazer isso.
A solução de resolver os problemas institucionais por meio de um árbitro externo, como o governo, ignora a possibilidade de resposta não servil dos outros seres humanos; eles podem agir de formas a não atender as especificações da autoridade hierárquica externa, pois tal não é eficiente para eles naquele dado momento. Isso é o que Adam Smith chamou de Falácia das Peças de Xadrez.
Ela também falha em perceber que, devido ao problema da racionalidade limitada, é impossível a um agente definir um repertório completo de respostas, segundo a qual existe apenas uma única solução ótima e objetiva. Ou seja, ela falha em notar que eventos estocásticos no modelo mecânico impositivo fragilizarão ainda mais os processos de decisão. Ao tentar, por exemplo, solucionar possíveis conflitos trabalhistas por meio da criação de normas que pressuponha certos conflitos ex ante, a justiça do trabalho criar um código sólido, mas que não pode prever como cada firma irá se organizar ou como cada relação de trabalho será estruturada. Ela tentar estabelecer uma solução definitiva para todos os problemas, mas o código é redigido com conhecimento limitado acerca de todos os nuances de como as firmas realmente estão funcionando. O mesmo erro da teoria neoclássica da firma repetido em lei.
Segundo Williamson, essas “consequências não pretendidas”, colocadas como uma impossibilidade do estabelecimento de controles hierárquicos diretos nas relações institucionais, não significa que as organizações estejam imersas em caos. Todas as organizações possuem falhas. Algumas podem ser extremamente rígidas em suas relações de trabalho, outras fragmentadas ao ponto de perder certos controles e outras terem culturas corporativas que são estranhas a olhos externos.
Mas isso se deve ao fato de que cada organização ser em si mesma uma forma alternativa de governança. Cada firma se organiza segundo uma série de fatores próprios a ela; o tipo de ambiente de negócios em que ela vive, o tipo de trabalhador que ela emprega, o tipo de insumo que trabalha, o tipo de fornecedor com que ela negocia, as ideias do proprietário, etc.
Como na teoria da evolução de Charles Darwin, cada ser que surge desse conjunto de fatores únicos é especial e insubstituível à sua maneira, cada qual com suas vantagens e desvantagens naturais devido sua estruturação. Um peixe pode ser inapto para voar quando comparado a uma águia, mas ele é perfeito para nadar e se movimentar em correntezas aquáticas. Suas diferenças não são necessariamente defeitos, mas apenas diferenças; derivadas de processos evolutivos diferentes.
A mesma coisa se aplica às “células” das firmas: seu capital e seus insumos. Na teoria neoclássica, o capital é considerado um fator homogêneo e indiferenciável. Dentro da equação de produção, é considerado que o capital se comporta como se fosse uma “massa de modelar” que pode ser amassado e modificado livremente sem perder sua essência. Assim, não existe propriamente um lugar nessa teoria para a questão de como as firmas se organizam. Como o capital é homogêneo, ele pode ser alocado livremente e não existe custos de transação para essa alocação.
Mas isso, como pontua Williamson, é completamente irreal. Máquinas não podem ser livremente alocadas ou usadas para qualquer fim, como se fosse uma massa de modelar que pudesse virar qualquer coisa. Ela é um ativo específico para um fim determinado e com alocação limitada. Dessa forma, o capital de uma firma é composto por diversas peças que possuem seu papel específico dentro do plano empresarial de produção, não podendo se encaixar ou serem alocados entre si.
Assim como as células de seu corpo, eu não posso fazer uma hemácia desempenhar o papel de um glóbulo branco e não posso fazer o tecido adiposo desempenhar as funções do tecido cardíaco. Da mesma forma na firma cada estágio de produção, cada segmento e forma de estruturação desse capital na firma é único para cada dado plano empresarial. Dessa forma, o capital não é uma unidade amorfa e que pode ser utilizada sem especificação em uma função de produção, mas sim algo heterogêneo e que se estrutura em etapas subjetivas na cabeça do empreendedor.
As organizações têm, por isso, uma forma de vida própria e mostram a importância de se considerar os efeitos das regularidades do desenho institucional ex ante. É necessário se considerar que cada modo de organização é definido por uma síndrome de atributos internamente consistentes.
As instituições contratuais são importantes no suporte dos modos de governança. A instituição contratual máxima das organizações é a hierarquia. Enquanto a justiça estatal pode lidar bem com disputar entre firmas, ela lida de modo extremamente imperfeito com disputas entre duas divisões de uma firma por causa de seu conhecimento imperfeito. Apenas os administradores daquela firma possuem o conhecimento, muitas vezes tácito, para lidar com tais problemas. Sem a possibilidade de se recorrer à justiça, a hierarquia é a única forma de se resolver conflitos.
Portanto, a teoria da firma de Williamson pode ser definida como: um trabalho a partir do cenário de contratos incompletos no qual acidentes ocorrem entre partes bilateralemente dependentes quando as situações reais envolvidas no processo contratual desviam dos termos estabelecidos anteriormente por desequilíbrios gerados por incertezas, conflitos e mudanças de ambiente, onde consequentemente as partes são levadas a barganhar seus direitos de propriedade sobre os bens transacionados em contratos várias e várias vezes. Tais transações múltiplas impõem custos de transação altos para os participantes, que terão que negociar várias vezes, de forma que tal cria incentivo para o desenvolvimento evolutivo de instituições de cooperação adaptativa.
Mas não pense que a teoria da firma de Williamson se aplica unicamente a empresas e o mundo corporativo. Ela se aplica a todas as instituições humanas.
Pense em uma civilização, por exemplo. Os membros de uma dada sociedade convivem entre si e estabelecem diversas relações ao longo de seu curso de vida. Mas essa relações são estabelecidas por meios simples ou complexos? Eu poderia facilmente pensar em uma sociedade em que todos simplesmente trocas coisas livremente e vivem suas vidas da maneira que quiserem, sem violar uns aos outros. Mas como garantir que tais relações seriam estáveis? Eu poderia questionar se o objeto que você me entregou atende mesmo às especificidades que queria ou que você me prometeu. Poderia questionar se seu muro está invadindo minha propriedade ou não. Como saber que tem razão e quem não? Como resolver o conflito?
A resposta natural seria pensar em se criar um governo. O estado, com seu monopólio territorial do uso da força, monitorar contratos, criar órgãos para arquivar cópias deles e olhar quando fosse necessário, criar sistemas de delimitação de propriedade e punições para caso de sua violação. Ele poderia vigiar a tudo e todos e fazer com que, regra por regra, a sociedade tendesse a um projeto ideal estabelecido por um plano mental de justiça ou outras ideias normativas. Mas que sociedade funciona assim? Existe alguma sociedade em que o estado interfira em todas as esferas das relações humanas e não tenha degenerado em um ambiente social insustentável? Não, as sociedade humanas não funcionam assim.
As relações humanas são reguladas em grande parte por formas mais primais de hierarquias. Dado os fatores que o cercam( ambiente, clima, relações com outras tribos, etc), os humanos desenvolvem regras e hierarquias orgânicas para coordenar suas sociedades de maneira totalmente natural.
Assim, diferentes sociedades estabelecem diferentes normas sociais e tradições culturais, cada uma estruturada em tecidos sociais ( civilizações) únicos. Cada uma possui sua organização hierárquica, suas instituições, selecionada de maneira evolutiva pelos diversos fatores em que ela vive. Cada norma social, cada elemento cultural, possui uma função dentro de uma dada sociedade e, mesmo que possa parecer irracional para observadores externos, ele possui um sentido, mesmo que tácito, para os membros dela. Assim, por mais que se possa achar os costumes dos nativos tribais africanos bárbaros, eles possuem sua razão de existir.
Assim, por mais que muitos desejem impor códigos centralizados de governança a toda uma sociedade, para que essa se torne aquilo idealizado pelos legisladores, muitas vezes regras informais ( tradições e hábitos) são melhores reguladores que leis. Quando se tenta modificar uma sociedade de cima para baixo, o planejador central muitas vezes aniquila certas instituições, que ele muitas vezes nem sabia que existiam ou sua função dentro de dada comunidade, que levam ao colapso daquela sociedade. As vezes é melhor deixar as pessoas se auto-organizarem e admitir que ninguém tem conhecimento suficiente para dizer que isso ou aquilo é melhor que a maneira delas levarem a vida.
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