Rafael Barros de Oliveira
Dois são os objetivos principais que orientam as universidades públicas em nosso país: pesquisa e democratização.
O primeiro objetivo da universidade, a pesquisa, é herança do modelo de universidade historicamente implementado no Brasil, estabelecido com a fundação da Universidade de Berlim em 1810 numa empreitada capitaneada pelos irmãos Wilhelm e Alexander von Humboldt. A grande inovação da universidade Humboldt foi a orientação de toda a estrutura da instituição para um fim acima de todos os outros: a pesquisa. Professores, pesquisadores, alunos, administradores, demais funcionários, “todos estão lá para a ciência”. A novidade está na concepção de ciência, ou de conhecimento, por trás deste projeto: não se trata apenas do conhecimento científico já adquirido e consolidado, mas também — e principalmente — do conhecimento a ser atingido, por meio de atividades de pesquisa.
O projeto da universidade de pesquisa encontrava sustentação no conceito de Bildung (formação). Inspirado em ideias do iluminismo de sua época, Wilhelm von Humboldt afirmava a necessidade de um processo de formação holística, uma formação ao mesmo tempo do indivíduo e da nação, formação de um povo e de uma cultura no saber e na ciência; um processo cujo local de realização central seria a universidade.
Um século separa a fundação da Universidade de Berlim dos movimentos fundadores das universidades brasileiras. No entanto, é possível encontrar diversas ressonâncias nacionais do modelo Humboldt. A título de exemplo, é digno de nota que textos de Fernando de Azevedo, uma das figuras por trás da fundação da Universidade de São Paulo (USP), elenque a formação de uma inteligência nacional como uma das missões principais da instituição. Como explicar que esse transplante tenha sido — ao menos na dimensão discursiva — possível?
Guardadas as devidas (des)proporções, pode-se dizer que tanto a fundação da Universidade de Berlim no início do século XIX quanto das universidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX foram respostas parciais, no campo da educação superior, à demanda de construção de um projeto nacional. É verdade que o Brasil já celebrara, na altura dos anos 1930, o centenário de sua independência e mais de quarenta anos do fim do Império — ao passo que a Alemanha ainda teria que esperar o curso de mais de sessenta anos, a contar da empreitada universitária de Humboldt, para ver sua unificação. No entanto, também por aqui se fazia o diagnóstico de que a unificação nacional não estava completa, de modo que seria necessário empreender um processo abrangente compreendendo diversas transformações econômicas, sociais e culturais; um processo multifacetado cuja síntese se dava na palavra “modernização”.
Eis o caráter de formação nacional ao qual se prestaria a fundação das universidades brasileiras. A pesquisa universitária, atividade central dessa instituição, seria orientada por esse caráter ao qual se pode dar o nome de nacional-desenvolvimentismo — sigo, nesses últimos e nos próximo parágrafos, o diagnóstico consolidado por Marcos Nobre em Da formação às ‘redes’: filosofia e cultura depois da modernização[1], reformulado e ampliado em Imobilismo em movimento[2].
Durante as décadas de 1980 e 1990, entretanto, diversas mudanças no cenário geopolítico e econômico internacional tornaram obsoleto e insustentável o projeto nacional-desenvolvimentista. Como resposta a esse movimento, emerge um novo paradigma ao qual chamaremos social-desenvolvimentismo — ainda acompanhando o esquema proposto por Nobre.
Não se trata mais de consolidar a cultura nacional enquanto unidade fechada — algo completamente anacrônico no mundo globalizado — , mas de promover uma dupla inclusão: do país no contexto internacional e das diversas camadas da população no interior de um plano de desenvolvimento nacional. Se as transformações políticas e econômicas globais provocaram um choque no modelo nacional-desenvolvimentista, diversas reivindicações de movimentos sociais por ampliação de direitos e distribuição de recursos se utilizaram dessa transição para ocupar um lugar de maior destaque no novo contexto. É por isso que o paradigma emergente nas últimas três décadas é caracterizado como social-desenvolvimentista.
Como parte integrante de uma sociedade, a universidade não deixou de ser afetada por essas transformações. Daí a afirmação, no início deste texto, de seu segundo objetivo: a democratização.
Num paradigma social-desenvolvimentista de comunidade, não basta a uma instituição superior de ensino apenas promover pesquisa de ponta, sendo necessário a ela responder também por uma demanda democrática que se desdobra em dois aspectos principais: a) por um lado, a exigência de que o conhecimento produzido nas universidades provoque impacto positivo na vida social — ou seja, tragam melhorias nas condições de vida, tanto por desenvolvimentos tecnológicos quanto pela influência no desenho de políticas públicas que possibilitem a prestação de serviços à população; b) por outro lado, a exigência de que a própria instituição universitária esteja aberta às mais diversas camadas da população.
Daí derivam discussões sobre cotas (raciais e sociais), reformas curriculares (para a inclusão de temas relacionados a minorias), permanência estudantil, etc. Do ponto de vista deste novo paradigma — ainda em disputa e ainda em vias de consolidação (ou rejeição) , a apresentação de bons resultados na formação de pesquisadores e na produção de conhecimento de alto nível não basta para considerar satisfatório o desempenho de uma universidade e cumprida a sua missão.
No entanto, as novas cobranças dirigidas à universidade não foram acompanhadas de uma reformulação estrutural. O que vemos, hoje, é a permanência do modelo Humboldt, do qual agora se exige o cumprimento de novas demandas sociais. Como essas instituições reagem ao novo quadro? Tentando conciliar ambas as exigências — de pesquisa e de democratização — no quadro institucional herdado do século XIX.
Como resultado, temos uma situação de verdadeira bipolaridade: a busca por excelência em pesquisa funcionando como força de silenciamento de demandas sociais e eventuais avanços em demandas sociais justificando resultados pouco significativos no campo da pesquisa. A universidade está em crise, no Brasil e no resto do mundo, e quanto a isso não parece haver muita dúvida — recomendo a leitura do texto de Ricardo Terra intitulado A universidade entre a excelência administrada e o social-desenvolvimentismo[3], no qual me inspiro em grande medida para compor esta reflexão.
Numa tentativa improvisada de conciliação, interpreta-se os objetivos um à luz do outro, impedindo a satisfação de ambos: sacrifica-se a qualidade e o impacto das pesquisas em prol de quantidades, como se “pesquisa massificada” suprisse a demanda democrática; aumenta-se descriteriosamente o número de vagas nos cursos de graduação e pós-graduação como se isso bastasse para promover a inclusão — sem critérios de promoção de políticas afirmativas, isso implica apenas em selecionar “mais dos mesmos”. Em suma, falhamos tanto em construir universidades democráticas quanto em consolidar instituições de ponta na pesquisa mundial.
Uma exceção digna de nota e elogio é aquela da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que vem tentando conciliar excelência em pesquisa e democratização sem confundir um e outro ideais — recomendo a leitura do texto Para ampliar a porta de entrada[4], publicado na Revista Pesquisa Fapesp, que narra os esforços desta instituição para promover inclusão de verdade e não massificação com verniz pseudo-democrático. Ainda assim, a tensão bipolar se mantém.
Pois bem. Então, o que fazer? Lutar pela restauração plena da universidade de pesquisa, pela preservação do “legado de Humboldt”? Abandonar este ideal e este modelo e pensar uma universidade social, uma universidade popular e democrática?
Antes de mais nada, é imperativo conduzir uma reforma no modelo universitário. Seria ingênuo, romântico — no pior sentido da palavra — e retrógrado apostar na manutenção de um modelo nacionalista e elitista após as transformações socioeconômicas mencionadas. Ao mesmo tempo, apostar na democratização via universalização da universidade seria trocar a bipolaridade pela esquizofrenia: é irrazoável pedir a uma única instituição que dê conta dos variados anseios, demandas e projetos de vida que florescem numa sociedade plural e democrática — como tentei mostrar em meu último texto[5].
A reformulação na estrutura da universidade não será eficaz se não for acompanhada por uma reconfiguração do ensino superior como um todo. Portanto, precisamos criar um pluralismo institucional na educação superior, implementando diferentes modelos para satisfazer diferentes necessidades sociais. Essa reforma só poderá ser bem-sucedida se feita de maneira radicalmente democrática, atenta aos anseios e aberta à participação das mais variadas parcelas da sociedade — o contrário das reformas de gabinete, impostas de cima para baixo, que temos visto ultimamente.
Precisamos de um modelo de educação superior para o social-desenvolvimentismo. Caso contrário, continuaremos na crise de um modelo falido, anacrônico e excludente de universidade.
Rafael Barros de Oliveira Formado em direito e em filosofia pela USP, foi pesquisador assistente na Direito GV e pesquisador visitante na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt Notas [1] http://ficem.fflch.usp.br/sites/ficem.fflch.usp.br/files/Marcos%20Nobre.pdf [2] http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13589 [3] http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/content_1576/file_1576.pdf [4] http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/10/03/para-ampliar-a-porta-de-entrada/ [5] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um Originalmente publicado em: https://medium.com/@barros_rb/o-curioso-caso-de-bipolaridade-das-universidades-p%C3%BAblicas-brasileiras-8c312e993317#.yufifexbl