Putin intervirá em Belarus?

No dia 9 de Agosto de 2020, o pequeno e até então pouco falado estado-nação de Belarus veio a ganhar holofotes de todo o mundo por causa de suas eleições presidenciais. Tal foco midiático se deveu à fatos inéditos observados nesse esquecido país do Leste Europeu.

Para entender a importância desses, um pequeno histórico político precisa ser dado. Belarus é uma das várias nações que nasceram em meio ao colapso da União Soviética nos anos 1990. Anteriormente, a nação nem sequer existia como estado formal; não sendo um “estado fantoche” de Moscou( como a Polônia ou a Húngria), mas uma parte integrante do território russo desde os tempos imperiais. Com o caos político que se seguiu às Revoluções de Veludo no Leste Europeu, a Glasnost e a tentativa do Golpe de 1991( somando-se a uma insatisfação geral com o governo soviético), o líder supremo de Belarus, Stanislav Shushkevitch, e o novo líder russo Boris Yeltsin assinaram um tratado de dissolução reconhecendo Belarus como uma nação independente e como parte integrante da Comunidade dos Estados Independentes.

Após a independência e a assinatura de uma constituição em 1994, eleições foram feitas e o ex-militar Aleksandr Lukashenko foi eleito para presidente com 80% dos votos em um segundo turno. E foi assim desde então.

Por 26 anos, desde sua eleição em 1994, Lukashenko tem governado o país continuamente, sem perder nenhuma eleição e sempre com amplas margens de voto( muitas vezes duvidosas). Sua permanência inconteste no poder, juntamente com suas táticas de censura a mídias independentes e espionagem de opositores, lhe deram o título de “último ditador da Europa”. Durante seu governo, Lukashenko isolou Belarus de qualquer relação com o Ocidente e subordinou seu país à agenda política da Rússia, sobretudo após a ascensão de Vladmir Putin ao poder. Ele marginalizou o mercado bielorruso a ser apenas uma economia complementar à de Moscou, parou as reformas liberalizantes tomadas nos anos 1990, retornou o país a uma economia controlada e dependente de empresas estatais( particularmente a Minsk Tractor Factory e Minsk Truck Factory). A Rússia também tem ajudado a manter a longevidade dessa “última economia soviética” por meio de preços subsidiados de petróleo e gás que correspondem em valor a cerca de 10% do PIB de Belarus.

Mas nenhum rei governa para sempre. Em 2020, ano de uma nova eleição presidencial que muitos achavam que seria apenas mais do mesmo, o poder de Lukashenko foi desafiado. Um jovem youtuber chamado Sergei Tikhanovsky se firmou como forte líder de oposição dentro da sociedade civil, sobretudo por seus vídeos denunciando as condições de estagnação que o presidente criou no país, e virou uma ameaça real ao governo como candidato de oposição. Sergei surfou em uma drástica queda de popularidade Lukashenko no último ano, devido sobretudo à péssima gestão governamental da pandemia de Covid-19 e à crise econômica gerada pela fragilidade econômica do país.

Lukashenko, para enfrentar essa oposição civil insurgente, usou do velho despotismo oriental. Dois dias após o anúncio da candidatura de Tikhanovsky, o governo prendeu vários líderes de oposição, incluindo Sergei, sob a alegação de violações da lei eleitoral nacional. Após isso o governo voltou a anunciar que as eleições ocorreriam normalmente e pesquisas eleitorais governamentais anunciavam a “não surpreendente” margem de 80% de Lukashenko sobre os “outros candidatos”. Para muitos bielorrusos isso foi a gota d’água.

Após a prisão dos líderes de oposição, milhares de pessoas iniciaram uma série de protestos em todo país exigindo a renúncia de Lukashenko e a realização de eleições limpas. Milhares de pessoas se reuniram em cidades como Minski e Brest e foram aumentando progressivamente à medida que o governo permanecia silencioso em dar uma resposta às exigências da sociedade civil. 

Os protestos eram liderados por uma nova líder civil de oposição e candidata à presidência. Svetlana Tikhanovskaya, uma jovem tradutora de inglês e esposa de Sergei Tikhanovsky, surgiu para tomar o lugar do marido e como candidata relutante( segundo a própria, seu desejo era mais estar com seus filhos em casa do que liderando um movimento político). O governo tratou logo de conter a ascensão da jovem. A televisão estatal anunciava que ela iria perder, mostrando que tinha apenas 10% dos votos contra os supostos 80% de Lukashenko. Svetlana lidava com as campanhas de desinformação do governo alegando que não aceitaria os resultados da eleição a não ser que fossem fiscalizadas por órgãos internacionais e entidades civis. Os manifestantes logo fizeram coro à sua exigência e Lukashenko prontamente respondeu a ambos com sequestros de pessoas a luz do dia, usos de força policial contra civis e vários cartuchos de balas de borracha e gás lacrimejante.

A situação só piorou quando Svetlana apareceu na televisão estatal lendo um pronunciamento pedindo pelo fim das manifestações e a restauração da ordem eleitoral e política em Belarus, o que muitos interpretaram como ela sendo forçada pelo governo a dizer o que disse. Após o acontecido, Tikhanovskaya fugiu com os filhos para a Lituânia e os manifestantes se tornaram ainda mais ativos em suas ações contra o governo. E, desde então, a situação em Belarus continua em extrema tensão conforme os conflitos entre Lukashenko e os civis avançam.

Fora as questões de ordem interna, uma grande preocupação internacional que surgiu com essa degradação do governo de Lukashenko é se a Rússia irá ou não intervir para salvar o regime. Muitos analistas ocidentais viram nos protestos em Belarus vários paralelos com o que ocorreu na “Revolução do Maidan” na Ucrânia em 2014-2015 e surgiu um medo de que Putin intervisse militarmente como fizera nesse caso para salvar um regime pró-Moscou de uma mudança para um regime pró-Ocidente.

Contudo, essas preocupações são críveis numa análise geopolítica racional? Dado o atual equilíbrio de poderes e conjuntura, a resposta é não.

Como colocado por Stephen Sestanovitch, do Council on Foreign Relations, a situação em Belarus é bastante diferente daquela que ocorreu na Ucrânia. Os atuais protestos, até o momento em que escrevo esse artigo, não tomaram uma dimensão anti-Rússia e sentimentos nacionalistas pró-Ocidentais ou, mais especificamente, pró-União Européia. O Maidan ocorreu em um momento em que um governo russofílico, liderado por Viktor Yanukovych, se recusou a iniciar um processo de ingresso da Ucrânia na União Européia e de um gradual rompimento da dependência econômica de Moscou, mesmo com amplo apoio da população( especialmente os mais jovens). Além disso, havia um forte sentimento nacionalista latente na sociedade ucraniana, alimentado pelas lembranças do genocídio cometido pelo russos no Holodomor e da Revolução Laranja de 2004. Em Belarus, por outro lado, os manifestante desejam uma mudança de governo, mas não uma mudança de orientação do governo. Não existe sentimentos nacionalistas anti-russos nos manifestantes e eles não clamam por um governo que rompa relações com Moscou.

Além disso, em virtude da não existência de conflitos entre a população bielorrussa e regiões de maioria russa, como no caso da região de Donetsky no leste da Ucrânia ou a Criméia, Putin não teria justificação e nem ganhos de propaganda doméstica para uma intervenção. A população russa não veria motivos para uma intervenção contra uma mudança política num país vizinho a menos que isso fosse uma ameaça a população russa local ou aos interesses geopolíticos nacionais, de forma que Putin não teria o que ganhar intervindo como fizera em 2014.

Além disso, devido problemas de atrito entre Lukashenko e Putin( depois do líder bielorusso ir contra os planos russos de uma quase união de Belarus com seu antigo território mestre e de maiores integrações econômicas entre os dois países), Moscou parece um tanto indiferente à sobrevivência do governo em Minski. Um fato bastante simbólico disso é que as mídias estatais russas tem demonstrado certo apoio( ou, ao menos, aceitação) dos protestos que ocorrem no país vizinho.

Como colocado por Anders Auslund, do Atlantic Council, ao invês de olhar para a Ucrânia para se ter perspectivas da posição russa com relação a Belarus, devíamos olhar para o que aconteceu na Armênia em 2018. Esse país também passou por sua “revolução colorida” contra o governo repressivo e corrupto do presidente Serzh Sargsyan, que já se perpetuava a 10 anos no poder, após esse passar uma reforma constitucional pouco transparente aumentando seus poderes. Milhares de pessoas, em maioria jovens estudantes, iniciaram manifestações em todo país que terminaram com o Serzh renunciando após as forças armadas se juntarem ao motim. Após o partido do governo anunciar que não iria lançar candidatos a eleição, o líder de oposição, Nikol Pashinyan, tomou o posto de primeiro-ministro. Contudo, mesmo com a queda de um governo pró-Moscou( Serzh) o novo governo armênio manteve suas relações com a Rússia, não mudando o tom diplomático e nem as relações comerciais com o país( a Armênia manteve-se na Comunidade dos Estados Independentes); de forma que Moscou não viu necessidade de sequer se pronunciar sobre o ocorrido além de formalidades diplomáticas.

RISCOS:

Contudo, mudanças de conjuntura podem mudar os riscos dos acontecimentos em Belarus. Um risco é bastante significativo para se prestar atenção: os protestos tomarem uma posição pró-Ocidente.

A ausência de pautas claras nas manifestações além das exigências eleitorais tem sido bem explorada por líderes ocidentais. A chefe da Comissão Européia, Ursula Von der Leyen, expressou o total apoio da União Européia à manifestações e prometeu um pacote de 53 milhões de euros em ajuda, o que inclui dois milhões para vítimas de violência policial e, mais importante, um milhão para “mídias independentes”. Por “mídias independentes” muito provavelmente a UE se refere a mídias pró-manifestantes e que sirvam para fazer contra-propaganda em relação ao governo Lukashenko, mostrando aquilo que a televisão estatal não mostra. O secretário de estado americano, Mike Pompeo, também fez críticas diretas ao que chamou de “eleições não-livres” em Belarus e prometeu tomar ações contra Lukashenko; o que podem incluir desde sanções econômicas até corte completo de relações diplomáticas.

Por mais que possam ser vistas como ações louváveis, elas podem ter uma grave consequência geopolítica. Se essas mídias apoiadas pela União Européia e ações de governos ocidentais criarem um pauta pró-Ocidente( de entrada de Belarus na UE, por exemplo), a Rússia pode ver seus interesses geopolíticos seriamente ameaçados. Desde a queda do governo Yanukovysh na Ucrânia em 2015, Belarus é o último regime pró-Moscou nas fronteiras russas e é visto como uma barreira contra o avanço ocidental em sua zona de influência. Existe duas razões estratégicas para isso. A primeira é geográfica. As fronteiras russas não possuem defesas naturais contra qualquer potencial inimigo a oeste, uma vez que está inteiramente situada na Grande Planície Europeia. Devido essa fraqueza estratégica, Moscou, desde os tempos imperiais, busca compensar essas fronteiras de difícil defesa expandindo para fronteiras naturais (como os Montes Carpatos na Romênia) ou criando regimes fantoches (como no caso soviético). 

 

Mapa Topográfico da Europa. Veja como a parte europeia da Rússia está situada em uma planície aberta sem nenhuma das grandes fronteiras naturais( Alpes e Montes Carpatos e Dináricos) que as outras nações européia tem acesso.

A segunda razão tem ampla relação com a primeira é a OTAN. Desde a queda da União Soviética, várias antigas repúblicas socialistas( como os Países Balticos e a Polônia) entraram para a OTAN e tropas da organização tem avançado cada vez mais em direção a Rússia no que eles chamam de uma política de “deterrence”. Essa política consiste em posicionar uma grande quantidade de força militar nas proximidades do inimigo para criar um incentivo à não-agressão por parte deste. Uma vez que tentativas de intervenção ou expansão de zona de influência para o oeste significaria uma contra-reação de uma quantidade massiva de força militar, isso limitaria as ações de Moscou.

Mapa mostrando as Principais Forças Militares da OTAN na Europa entre 2014-2015. Fonte: AFP.

Se Belarus se tornasse um regime pró-Ocidente ou, pior, um membro da OTAN, isso seria uma séria ameaça a Moscou, pois significaria que toda sua fronteira europeia estaria cercada por tropas inimigas e sob uma zona de influência hostil a seus interesses geopolíticos. Isso poderia criar tensões que teriam o potencial de causar algo semelhante a Ucrânia ou pior.

Como bem notou o professor John Mearsheimer, as crescentes tensões militares entre Rússia e Ocidente que se seguiram a Revolução Maidan se devem a essa política de deterrence da OTAN. Em 2008, a aliança ocidental já tinha tentado incluir a Geórgia no pacto. O presidente Mikheil Saakashvili fez várias ações de aproximar seu país militar e economicamente da União Europeia e dos EUA e como resultado ocorreu a Invasão Russa da Geórgia em 2008 para suprimir as ações, o que levou ocasionalmente a uma guerra civil entre o governo georgiano e as regiões separatistas pró-Moscou da Abecásia e da Ossétia do Sul. Após isso ocorreu a entrada da Albânia e da Croácia no pacto militar em 2009, colocando tropas ocidentais na zona de influência russa na Sérvia( algo particularmente complicado, sobretudo devido os conflitos entre o governo sérvio pró-Moscou e os separatistas apoiados pelo Ocidente na região do Kosovo, de maioria albanesa). Após isso ocorreu os acontecimentos da Revolução Maidan e uma aproximação entre o governo ucraniano de Petro Poroshenko e a União Europeia por meio da Eastern Partnership, que serviria como um “treino” antes da Ucrânia entrar na UE.

Recentemente, Lukashenko acusou a OTAN de estar movimentando tropas na fronteira de Belarus com a Polônia, mas a aliança negou o fato. Contudo, a OTAN disse que continua “observando atentamente” os acontecimentos em Belarus. As forças ocidentais na Polônia somam 20.000 tropas (das quais 5.000 estão preparadas para combate imediato), além de 32 caças F-35A, 48 F-16S e vários tanques M-1 Abrams.

Até o momento em que escrevo esse artigo, nenhuma medida direta foi tomada por Moscou em reação ao pronunciamento dos líderes dos Estados Unidos e da União Européia. Contudo, Putin já sinalizou que pode enviar forças militares para intervir em favor de Lukashenko caso “a situação comece a sair do controle e elementos extremistas que agem sob a cobertura de slogans políticos cruzem certas fronteiras e se engajem em banditismo, queimando carros, casas, bancos ou invadindo prédios públicos”. Além disso, atividades militares atípicas tem sido observadas na fronteira russa de Belarus. Cerca de 3.500 soldados tem sido vistos em movimento ao sul de São Petersburgo em direção a Belarus e outros foram vistos nas cidades de fronteira de Smolensk e Vitebsk. E, desde o começo dos protestos, o ministério da defesa russo tem realizado exercícios militares com tanques na fronteira.

Dados a conjuntura atual e tomando a devida atenção com os riscos, devemos esperar para ver qual será a posição final dos manifestantes bielorussos. Se sua posição ideológica assumirá mais feições de Armênia ou de Maidan. As tensões em torno desses acontecimentos terá implicações geopolíticas que afetarão toda a segurança mundial e são dignas de atenção por qualquer observador internacional.

Sávio Coelho

Analista Financeiro e de Dados. Tem interesse nas áreas de teoria da firma, política fiscal e finanças quantitativas.
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