Robôs, automação de investimentos e IA na indústria financeira

Em seu clássico artigo Efficient Capital Markets: a Review of Theory and Empirical Work, publicado em 1970 no Journal of Finance, o economista americano Eugene Fama apresentou a teoria dos mercados eficientes, segundo a qual o preço dos ativos no mercado de capitais seria um reflexo exato das informações disponíveis em dado momento.

Curiosamente, Fama compartilhou o Nobel com Robert J. Shiller, um dos expoentes da economia comportamental (behavioral economics). Em detrimento à hipótese dos mercados perfeitos, a economia comportamental recorre à psicologia para reconhecer a racionalidade limitada dos seres humanos e apontar suas falhas. Afinal, o mercado de capitais é composto por pessoas, sejam os investidores pessoa física ou os indivíduos por trás de investidores institucionais, tais como agentes de investimento, analistas e traders. O ser humano é fator determinante para o funcionamento de tal estrutura de aproximação dos agentes deficitários e superavitários. 

Contudo, o uso de inteligência artificial (IA) por instituições financeiras promete mudar, ao menos em parte, esse cenário ao introduzir novas formas de tomada de decisão para alocação de recursos, focadas no uso de dados e que permitam identificar o perfil do investidor através de uma análise de seu histórico e voltadas, principalmente, para os investidores-consumidores. 

De acordo com o relatório  sobre novas tecnologias no mercado divulgado pelo Núcleo de Inovação em Tecnologias Financeiras (FinTech Hub) da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a prática de consultoria financeira automatizada, conhecida como automated advice ou robo-advisors, é uma das mais utilizadas pelos 80 empreendimentos de inovação financeira entrevistados pela autarquia.

Inteligência artificial na indústria financeira

A assessoria financeira automatizada faz parte de uma tendência global. Em 2019, os investimentos administrados por robôs nos Estados Unidos totalizam até o momento um valor aproximado de US$ 750 milhões e a expectativa, de acordo com o relatório United States Robo-Advisory Market (2015-2023), é de que esse mercado assista a um crescimento de dois dígitos até o início da próxima década

Na Europa, já existem diversos robo-advisors – a maioria deles, disponível na Alemanha e no Reino Unido é voltada para investimentos em fundos de índice (Exchanged Trated Funds – ETFs), que envolvem a gestão passiva dos recursos. Conforme indicado por um estudo publicado pelo Banco Mundial em fevereiro deste ano, essa tecnologia também já está sendo implementada em países asiáticos, como China, Japão e Singapura, e também em países africanos.

Nesse sentido, algumas entidades do mercado de capitais global vêm se posicionando sobre o crescimento do uso de robôs investidores, reconhecendo seu potencial de inclusão financeira e apontando desafios para sua regulação. Vale destacar o Relatório Conjunto de Resultados do Monitoramento de Consultoria Financeira Automatizada, publicado em 2016 e atualizado em 2018 pelas Autoridades Europeias de Valores Mobiliários, Bancos e Seguros. Segundo o relatório, apesar desse tema merecer acompanhamento e incentivo, o uso de robo-advisors ainda irá demorar para efetivamente se consolidar entre investidores

Também em 2018, a Financial Conduct Authority (FCA) publicou artigo destacando que as empresas que ofereçam serviços de investimentos automatizados no país devem se ater às regras de transparência aplicáveis aos participantes do mercado e elaborar relatórios detalhados aos clientes para garantir que o investimento sugerido pela inteligência artificial seja adequado a cada tipo de investidor.

No Brasil, existem 5 principais fintechs (Vérios, Magnetis, Warren, Monetus e Alkanza), que oferecem robôs de investimentos aos consumidores. Tais plataformas também possuem um valor mínimo de investimento (relativamente baixo), não ultrapassando os R$ 15.000,00, e se destinam à alocação de recursos em renda fixa e ETFs. Além de trabalharem com taxas de administração inferiores se comparadas àquelas normalmente cobradas pelos administradores de carteira de operação humana

Regulação dos robo-advisors: desafios e possibilidades

Diante desse cenário, surgem discussões a respeito da regulação dos robo-advisors, observando as regras já emitidas pelos respectivos entes reguladores a respeito de participantes do mercado que desempenham atividades de assessoria financeira. 

No mercado de valores mobiliários brasileiro, a CVM reconhece a figura do agente autônomo de investimentos (Instrução CVM – ICVM nº 497/2011), dos administradores de carteira (ICVM 558/2015) e dos consultores de valores mobiliários (ICVM 592/2017), dentre outras. Nos termos do art. 16 da referida ICVM 592/2017, os robôs investidores fazem parte desta última categoria e, portanto, devem se registrar perante a CVM observando as regras da instrução aplicáveis a indivíduos. 

Vale destacar que esses robôs tomam suas decisões a partir de uma base de dados obtidos pelo histórico de operações e preferências dos clientes, lidando, portanto, com dados pessoais, que estão sujeitos ao regime da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD), conforme alterada, a qual entrará em vigor em agosto de 2020.

Nesse sentido, é necessário que, desde sua concepção – observando o princípio conhecido como “privacy by design” -, os robo-advisors estejam adequados às hipóteses de tratamento de dados pessoais previstas nesse diploma geral, em seus artigos 7º, para qualquer tipo de dados pessoais, e art. 11, para dados sensíveis [1], e às demais normas sobre a matéria que venham a se aplicar, de acordo com o caso (Marco Civil da Internet ou Código de Defesa do Consumidor, por exemplo). 

Sobre o cenário regulatório no Brasil, cabe ressaltar que, a fim de mitigar potenciais riscos cibernéticos a que estão sujeitos os agentes do mercado que lidam com investimentos automatizados, a ANBIMA publicou em 2017 o Guia de Segurança Cibernética contendo recomendações para a implementação de um programa de cybersecurity que deverá ser seguido por instituições financeiras envolvidas com novas tecnologias. 

Tal programa envolve ações de prevenção, monitoramento de riscos e respostas a vazamentos de dados, que, de acordo com o art. 48 da LGPD, também deverão ser comunicados à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), caso venham a ocorrer. 

A partir de notas divulgadas em junho deste ano, a CVM declarou sua intenção de implementar, em conjunto com a Secretaria Especial do Ministério da Economia, o Banco Central do Brasil e a Superintendência de Seguros Privados, um sandbox regulatório para o desenvolvimento de tecnologias como: robôs-consultores financeiros e inteligência artificial.

Em relação a outros países, conforme relatório divulgado pela International Organization of Securities Comission (IOSCO), Austrália e Canadá destacam-se na implementação de regras que disciplinam a consultoria automatizada voltada principalmente aos investidores pessoa física.

Desde 2015, a autoridade do mercado de capitais canadense estuda o assunto, tendo publicado um guia para consultoria de investimentos online. Já o órgão regulador australiano divulgou em 2016 o Consultation Paper 254, que norteia a regulação dos robôs financeiros nesse país. Outro bom exemplo é a França, cuja autoridade do mercado financeiro também advogou em favor dos robo-advisors, propondo uma licença “guarda-chuva” para os consultores automatizados da União Europeia.

O futuro dos investimentos automatizados

De fato, os robo-advisors trazem vantagens para os investidores pessoa física e podem servir como uma importante ferramenta para promover a democratização do mercado de capitais – que no Brasil, ainda tem amplo espaço para crescimento.                  

A utilização dos robo-advisors reduz os custos de administração para os clientes, permitindo que investidores com menos capital possam acessar o mercado. Muitos defensores de tal inovação entendem que a escolha por robôs de investimentos também minimizaria eventuais conflitos de interesses, decorrente das relações humanas. Contudo, trata-se de tecnologia ainda incipiente, que ainda precisa ser efetivamente testada e exige recursos para seu desenvolvimento. É crucial ter em mente que tais plataformas não estarão livres de riscos cibernéticos e bugs, que podem complicar seu uso.

Afinal, os códigos serão criados também por pessoas e, por isso, não estarão absolutamente blindados aos erros e aos conflitos inerentes à racionalidade humana, que permeiam o mercado e podem justificar suas falhas, como advogam os estudiosos da economia comportamental. É inegável que, apesar de ainda limitada, a IA promete ter significativo impacto no mercado de capitais e em todos os demais ramos do mercado financeiro. Tendo em vista as aplicações cognitivas existentes, a exemplo do robô corporativo Watson, da IBM, e dos instrumentos que com base nele foram desenvolvidos, grandes players já procuram criar suas próprias plataformas de investimentos automatizados de grande alcance.

De acordo com relatório divulgado pela Price Waterhouse Coopers (PWC), mais de 90% dos administradores de carteira reconhecem a relevância de uma análise de dados bem estruturada. Por isso, é interessante que os participantes do mercado e os entes reguladores acompanhem de perto a evolução da IA, para encontrar soluções inovadoras que permitam melhorar, cada vez mais, a experiência de todos os investidores.

Maria Eugenia Cirillo

É graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio com ênfase em Direito Empresarial e auxiliar jurídica em um escritório de advocacia de grande porte, atuando nas áreas de fusões e aquisições e tecnologia. 

Notas

[1] “Art. 5º. Para os fins desta Lei, considera-se: […] II- dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; […].”  Lei 13.709, de 14 de agosto de 2019. 

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