Nada tão atemporal quanto uma obra de William Shakespeare (1564-1616). Na história de O Mercador de Veneza, escrito entre 1596 e 1599, na belíssima cidade de Veneza do século XV, Bassanio pede a Antonio o empréstimo de três mil ducados para que possa cortejar Porcia, uma rica herdeira. Antonio é rico, mas todo o seu dinheiro está em transporte para empreendimentos fora de Veneza.
Assim, para ajudar o amigo Bassanio, Antonio recorre ao judeu Shylock para conseguir o empréstimo. Shylock estava à espera de uma oportunidade de enfrentar Antonio, já que antes este o ofendera, por ser judeu e por praticar a usura (empréstimo à juros), algo que era tido como pecado e proibido entre os cristãos, mas permitido aos judeus.
Shylock, no contrato, ao tentar demonstrar boa-fé a Antonio, põe a condição de que não cobrará juros dos três mil ducados, mas, se estes não forem pagos em três meses, Antonio deverá dar um pedaço de sua própria carne ao judeu. Os navios com a fortuna de Antonio naufragam e este não consegue pagar Shylock a tempo, fazendo com que o caso seja levado à corte para que se defina se a condição será ou não executada.
Logo que se sabe sobre o infortúnio de Antonio, Shylock descobre que sua filha, Jessica, fugiu com um amigo de Antonio levando parte de sua fortuna, o que deixa Shylock furioso.
Outros amigos de Antonio tentam convencer Shylock de não cobrar a dívida em contrato, uma vez que Antonio não conseguiu cumprir sua parte e, em um momento de cólera, Shylock professa o célebre discurso “Hath not a jew eyes?“, que a seguir temos um trecho:
[…] “Ele desgraçou-me, e fez-me perder meio milhão, riu-se das minhas perdas, troçou dos meus ganhos, zombou da minha nação, destroçou as minhas barganhas, arrefeceu-me os amigos, aqueceu-me os inimigos. Qual o motivo? Porque sou judeu. Será que um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Não é alimentado com a mesma comida, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e arrefecido pelo mesmo Inverno e Verão, como um cristão? Se nos picarem, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? E se nos fizerem mal, não nos deveremos vingar?” […]
A história também é contada no filme de 2004, O Mercador de Veneza, dirigido por Michael Radford, em que Shylock é magistralmente interpretado por Al Pacino.
Levados à corte, Shylock exige que lhe seja feita justiça, e o contrato seja cumprido. Demonstra-se irredutível e ainda indica que a libra de carne de Antonio seja retirada do ponto mais próximo do coração. Porcia, agora casada com Bassanio, disfarça-se de homem e apresenta-se como Baltasar, um advogado tentando encontrar uma resolução ao impasse.
Fracassa ao oferecer o dobro do valor que era devido; Shylock insiste que só quer que o contrato seja cumprido. Porcia, portanto, disfarçada de Baltasar, aceita a situação, mas impõe que a retirada da carne de Antonio não seja acompanhada de nenhuma gota de sangue. E, alinhada ao doge, afirma que o derramamento de sangue cristão implicaria no confisco da fortuna do judeu.
Curiosamente, a maneira como os judeus foram descritos na literatura inglesa ao longo dos séculos, e essa literatura influenciando outras literaturas e mídias, carrega forte influência de Shakespeare e a interpretação de seu Shylock. Com poucas variações, a maior parte das obras literárias do país anteriores ao século XX mostram um judeu excessivamente caricato, descrito quase sempre como um indivíduo rico e avarento, lascivo e somente tolerado pela riqueza e influência que possui. Esse tema é bastante explorado no livro The Fictive Jew in the Literature of England, de David Mirsky.
Shylock, acuado, revê sua posição e afirma aceitar o dinheiro oferecido, mas o juiz lhe nega, por este já ter recusado esse acordo. Agora, por ter conspirado contra a vida de um veneziano, é definido que Shylock terá que entregar metade de seus bens a Antonio e a outra metade ao Estado. Antonio, por fim, nega sua parte, afirmando como condição a conversão de Shylock ao cristianismo, forçando-o, assim, além de praticamente perder todos os seus bens, também abdicar de sua fé.
Em 2016, a famosa ministra da Suprema Corte Americana, Ruth Bader Ginsburg, e outros colegas magistrados, fizeram, em Veneza, uma encenação que trata o julgamento de Shylock, dando um final diferente ao enredo de Shakespeare.
Se a situação fosse o contrário, e Shylock quem devesse e colocasse sua própria pele em risco, será que os juízes da época sequer hesitariam em cumprir o contrato à risca e, consequentemente, tirar a carne do judeu? Com esse questionamento podemos trazer a famosa frase atribuída a Nicolau Maquiavel (1469-1527): “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei“; ou o argumento de Trasímaco, em A República (século IV a.C.), de Platão, num diálogo onde afirma que “a justiça nada mais é que a conveniência do mais forte”.
Passamos a perceber uma justiça que sempre tende ao lado dos mais favorecidos, aos mais poderosos e influentes, aos “dominantes”.
Nesse sentido, as leis deveriam prover que todos sejam iguais, e os julgamentos, o cumprimento de contratos, sejam justos. Mas, quem vigiará quem faz as leis? (Quis custodiet ipsos custodes?) Quem fizer essas leis, quem as interpretar, não fará para que uns sejam mais favorecidos que outros quando lhe convier? O que garante que não será assim?
Vemos esses problemas em todas as Repúblicas. Mais de perto, na nossa. Seja na corte comum ou, recorrentemente através da mídia, na Suprema Corte. Nosso país, particularmente, com uma Constituição imensa, cheia de poréns, emendas e variações, deixando um sistema judiciário que já é moroso, ainda mais complexo e aberto a pontos de vista, criando mais brechas para interpretações, cada interpretação para um momento, ou quem, quando for conveniente. A máxima latina do senador romano Tacitus (56 d.C. – 120 d.C.) nos cabe bem: “Corruptissima republica plurimae leges” (Quanto mais corrupto o Estado, mais leis possui).
Parte desses assuntos é vastamente pesquisado e estudado na Teoria dos Contratos
Sendo uma área da Economia, especificamente da microeconomia, a Teoria dos Contratos visa entender como os arranjos contratuais e suas interações são constituídas pelos atores econômicos, sejam esses apenas indivíduos, empresas ou nações. Também é estudado como a imprevisibilidade afeta esses acordos, trazendo para o estudo dessa teoria, além de conceitos de análise econômica do direito e micro e macroeconomia em si, também probabilidade e a compreensão de algoritmos e modelos para compreender melhor a tomada de decisão e tentar calcular os seus efeitos e consequências.
Contratos bem definidos, independente de qual seja a negociação ou seu objetivo, são capazes de otimizar a relação e os retornos dos envolvidos, tornando essas relações mais profícuas, influenciando todos os processos de um sistema onde propicia melhoria a todo um setor, um modelo de negócio ou até mesmo do funcionamento de toda a Economia. Minimizando as incertezas, influenciadas pela assimetria de informações, e fazendo a melhor execução potencial de acordos e contratos, passamos a desenvolver um ambiente de negócios com muito mais fluidez, desempenho e eficiência.
Há na Teoria dos Contratos muitos conceitos menos abstratos e mais aplicáveis. É utilizada em seus estudos o famoso Teorema da Utilidade de Neumann-Morgenstern, por exemplo, que é a base para a Teoria da Utilidade Esperada. Consequentemente a Teoria dos Contratos é profusamente analisada e aplicada em outra área importantíssima para Economia, e tão interessante quanto, a Teoria dos Jogos. O Equilíbrio de Nash é um bom modelo para essa aplicabilidade, e todos os estudos acerca da Teoria da Decisão.
Procura encontrar soluções para o clássico e comum Problema da Seleção Adversa, problema qual ocorre quando uma das partes envolvidas numa transação sabe coisas relevantes à essa transação, mas que são desconhecidas para a outra parte interessada.
Há conceitos e princípios mais axiomáticos, como o do termo “Pacta Sunt Servanda” (os pactos devem ser observados) – implicando que um contrato se faz realmente obrigatório entre as partes. O contrato obriga as partes nos limites que a lei impõe, é claro. Por esse princípio, Shylock hoje não poderia fazer cumprir um contrato que atentasse à vida de Antonio, por mais que contratos assinados devam ser a rigor cumpridos.
Ou o princípio de “Rebus Sic Stantibus” (estando assim as coisas) – este implicando que os contratos se mantém ‘se a situação atual das coisas se mantiverem iguais’. Situações imprevisíveis e surpreendentes, que se demonstram realmente difíceis de serem calculadas, e afetem uma das partes (uma catástrofe natural, por exemplo), podem fazer o contrato ser revisto ou até deixar de ter validade. As embarcações com a fortuna de Antonio terem naufragado, por exemplo, poderia ser um modelo de aplicabilidade desse princípio, fazendo com que o contrato pudesse ser revisto. Essas análises e esse conceito são bases para a chamada Teoria da Imprevisão.
Os economistas Oliver Hart, da Universidade de Harvard, e Bengt Holmström, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), foram premiados com o Nobel de Ciências Econômicas de 2016 por suas contribuições à Teoria dos Contratos.
Kenneth Arrow também é um importante economista (e vencedor do Nobel de Ciências Econômicas de 1972) cujo estudos auxiliaram na evolução desta Teoria.
Portanto, para lidarmos com a atemporal injustiça do mundo, este em que os mais frágeis e distantes do poder parecem nunca ser tratados como iguais, e que a Justiça demonstra ter suas próprias preferências, precisamos compreender melhor como as relações e interações entre indivíduos e organizações podem atingir o máximo de eficiência, tornando-as realmente justas, equilibradas e trazendo o que se deve, além do discurso. O mundo precisa se lembrar que igualdade, justiça e liberdade são mais do que palavras, são perspectivas, e que devem ser vigiadas. Mas, infelizmente, para esse mundo, a clássica frase de George Orwell parece ainda prevalecer:
“Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros” – A Revolução dos Bichos, 1945.